Vivemos na era do direito, do vazio ou da anomia?
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Da segunda metade do século passado a esta parte, veio a lume uma ruma de declarações sobre os direitos do homem e da sociedade, incomensuravelmente maior do que a soma das mais conhecidas normas de direito universais até então conhecidas, sem olvidar textos e códigos singulares, mas de grande repercussão e influência para outros povos. Como, por exemplo, o Código de Hamurabi, o Código de Manu, a Lei das 12 Tábuas, a Carta Magna outorgada, em 1215, por João Sem Terra, a Carta das Nações Unidas ("Declaração Universal dos Direitos do Homem", São Francisco, 1945), a Declaração dos Direitos Humanos (aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 1948) e a Carta da Organização dos Estados Americanos (Bogotá, 1948; Buenos Aires, 1967).
Para não ficar no campo do alegar por alegar, convém lembrar os textos universais que retratam, segundo a autorizada preleção do saudoso Norberto Bobbio, falecido em janeiro de 2004 com a fama de um dos maiores jurisfilósofos contemporâneos, a passagem que "ocorreu do homem genérico -do homem enquanto homem- para o homem específico, ou tomado na diversidade de seus diversos status sociais, com base em diferentes critérios de diferenciação (o sexo, a idade, as condições físicas), cada um dos quais revela diferenças específicas, que não permitem igual tratamento e igual proteção.
A despeito de se viver na era dos direitos, são significativos os homicídios no mundo inteiro
A mulher é diferente do homem; a criança, do adulto; o adulto, do velho; o sadio, do doente; o doente temporário, do doente crônico; o doente mental, dos outros doentes; os fisicamente normais, dos deficientes etc. Basta examinar as cartas de direitos que se sucederam no âmbito internacional, nestes últimos 40 anos, para perceber esse fenômeno: em 1952, a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher; em 1959, a Declaração da Criança; em 1971, a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental; em 1975, a Declaração dos Direitos dos Deficientes Físicos; em 1982, a primeira Assembléia Mundial, em Viena, sobre os direitos dos anciãos, que propôs um plano de ação aprovado por uma resolução da assembléia da ONU, em 3 de dezembro" ("A Era dos Direitos", editora Campus).
No Brasil, na mesma época, tivemos importantes diplomas, tais como: Lei de Ação Popular, Lei de Ação Civil Pública, Estatuto da Criança e do Adolescente e Código de Defesa do Consumidor.
A despeito de se viver na era dos direitos, são significativos os homicídios no mundo inteiro, as condições subumanas a que são submetidas centenas de milhões de pessoas, guerras motivadas por causas não-esclarecidas, execuções sumárias como as praticadas em Cuba etc. No Brasil, aí estão assassínios praticados por graúdos mandantes que se servem de pistoleiros profissionais, trabalho escravo, tráfico de mulheres e menores para prostituição, a deplorável guerra do tráfico de drogas e as chacinas em grandes cidades brasileiras, em pleno século 21 -as quais, de ordinário, passam quase despercebidas.
Pelo número de convenções, leis, tratados etc., está-se na era dos direitos. No plano da efetivação dos direitos, para utilizar a expressão de Lipovetsky (Enrique Rojas, in "O Homem Light", Coimbra), não se estaria na era do vazio?
Na Páscoa de 1985, Ralf Dahrendorf trouxe à luz o livro "A Lei e a Ordem", em que desenvolveu o tema da anomia. Suas proféticas observações são de uma atualidade inimaginável. Explicou que o significado real da erosão da lei e da ordem podia ser conceituado como a ausência crescente de punições efetivas para as condutas delituosas, nestas incluídas as infrações toleradas, as não-denunciadas pelas vítimas e as ocultas nas estatísticas.
Depois de ensinar que, em 1591, Lambarde conceituara a anomia como um fenômeno portador de distúrbios, dúvidas e incertezas acerca de tudo, asseverou que "a anomia é uma condição social em que as normas reguladoras do comportamento das pessoas perderam sua validade. Uma garantia dessa validade consiste na força presente e clara de sanções. Onde prevalece a impunidade, a eficácia das normas está em perigo. Nesse sentido, a anomia descreve um estado de coisas em que as violações de normas não são punidas".
Em nosso país, urge aparelhar o sistema Judiciário e descomplicar os códigos processuais. O Código de Processo Civil, por exemplo, virou verdadeiro cipoal, perdeu sua organicidade, com cerca de 50 leis modificativas a ele supervenientes, e os artigos nele marchetados já estão até se servindo das letras do alfabeto. Provavelmente o alfabeto português não será suficiente e, logo mais, vão ter que usar da escrita suméria com seus 20 mil ideogramas.
Créditos: Domingos Franciulli Netto, 68, é ministro do Superior Tribunal de Justiça.