qual era a alimentação dos escravos que trabalhavam nos Engenhos de açúcar?
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Já houve quem aventasse a ideia de que os escravos que trabalhavam nos engenhos de açúcar no Brasil Colonial tinham uma alimentação, sob certos aspectos, até melhor que a dos senhores que habitavam a casa-grande. Sucedia assim, afirmou-se, porque os escravos recebiam um pequeno pedaço de terra no qual podiam, nas horas de folga, cultivar para si gêneros alimentícios que complementavam a ração diária que recebiam; já os senhores de engenho e suas famílias, afeitos à comida de Portugal, alimentavam-se, rotineiramente, de conservas que recebiam do Reino, que chegavam ao Brasil em muito mal estado, depois de meses de travessia do Atlântico.
Entretanto, os escritos deixados por autores que presenciaram a escravidão nos engenhos de modo algum corroboram tal visão que, se tem algo de "romântica", talvez não corresponda à realidade. É bom lembrar que esses autores, como a maioria das pessoas de seu tempo, não eram contrários à escravidão (o que acrescenta confiabilidade ao seu testemunho), apenas condenavam os maus-tratos a que eram submetidos os cativos.
Quem já leu, de André João Antonil, (¹) a célebre obra Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas, sabe muito bem que os trabalhadores eram ocupados nos afazeres relacionados à produção de açúcar desde o nascer do sol até entrada a noite, ocorrendo, por vezes, na temporada de safra da cana, que um engenho funcionasse ininterruptamente, dia e noite. Além disso, como veremos em uma postagem que não tardará a aparecer neste blog, muitos senhores sequer faziam respeitar o direito dos escravos ao descanso nos domingos e feriados religiosos, como preconizava a Igreja. Não espanta, pois, que o Padre Antonil/Andreoni não medisse palavras em condenar às penas do inferno os senhores que, extraindo deles até a última gota de suor, abandonavam-nos à penúria absoluta quando se tratava de alimentação e vestuário:
"Porém não lhes dar farinha, nem dia para a plantarem e querer que sirvam de sol a sol no partido, de dia, e de noite com pouco descanso no engenho: como se admitirá no Tribunal de Deus sem castigo? Se o negar a esmola a quem com grave necessidade a pede é negá-la a Cristo Senhor nosso, como ele o diz no Evangelho, que será negar o sustento e o vestido a seu escravo? E que razão dará de si quem dá serafina e seda e outras galas às que são ocasião de sua perdição, e depois nega quatro ou cinco varas de algodão e outras poucas de pano da Serra a quem se derrete em suor para o servir, e apenas tem tempo para buscar uma raiz e um caranguejo para comer?" (²)
Além disso, no Compêndio Narrativo do Peregrino da América (³), provavelmente o primeiro bestseller em terras do Brasil, o autor, Nuno Marques Pereira, oferece a seguinte argumentação:
"Queixam-se muitos senhores, que lhes fogem os escravos, e lhes morrem, sendo que muitos escravos com maior razão se podiam queixar de seus senhores, pelos [sic] terem em suas casas tratando-os tão mal. [...] A fome e o frio metem a lebre a caminho. Como é possível viver um escravo em um lugar onde onde o matam à fome, e o deixam perecer ao frio, e sobre isso o fazem trabalhar?" (⁴)
E prossegue, comparando a situação dos escravos nos engenhos do Brasil à dos bois em Portugal:
"Os lavradores em Portugal, ainda aos bois com que trabalham, lhes dão o sustento necessário, e os recolhem do frio, porque se assim não o fizessem, trabalhariam um ano, porém para o outro haviam de ficar sem bois que os ajudassem. E eu vejo que muitos lavradores do Brasil tratam tão mal a seus escravos, que não só os fazem trabalhar de dia, senão ainda de noite, rotos, nus, e sem sustento. Pois com que razão se queixa um homem destes que assim obra, de que lhe fujam os escravos, e lhe morram, faltando-lhes ele com o necessário alimento para a vida?" (⁵)
Chegamos, pois, meus leitores, aos seguintes termos: Se os senhores, pela fúria de produzir o máximo possível de açúcar, descuidavam do cultivo de gêneros alimentícios até para si mesmos, como supor que teriam alguma preocupação com este assunto em relação a seus escravos? Não é difícil perceber que, nessas condições, é pouco provável que o escravos pudessem, em verdadeiro idílio, cultivar suas hortas, das quais, prodigiosamente, extrairiam melhor sustento do que o disponível para seus senhores. Os documentos acima citados são, nesse aspecto, bastante claros; eventuais exceções, quando as houvesse, eram apenas para confirmar a regra.
Por outro lado, é verdade que, em algumas situações, em tempos posteriores tornou-se comum entregar uma fração de terra aos escravos para que a cultivassem e dela dispusessem para uso próprio - isso não era de todo incomum em fazendas de café, no século XIX - mas, nesse caso, vê-se mais uma vez a perfídia da lógica escravista: se o escravo plantava um "extra" para sua alimentação, ficava o senhor dispensado, por assim dizer, dessa obrigação.