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“A criatura”
A tempestade tornava a noite ainda mais escura e assustadora. Raios riscavam o céu de chumbo e a luz azulada
dos relâmpagos iluminava o vale solitário, penetrando entre as árvores da floresta espessa. Os trovões
retumbavam como súbitos tiros de canhão, interrompendo o silêncio do cenário [...].
Alimentadas pela chuva insistente, as águas do rio começavam a subir e a invadir as margens, carregando tudo
o que encontravam no caminho. Barrancos despencavam e árvores eram arrancadas pela força da correnteza,
enquanto o rio se misturava ao resto como se tudo fosse uma coisa só. Mas algo... ou alguém... ainda resistia.
Agarrado desesperadamente a um tronco grosso que as águas levavam rio abaixo, um garoto exausto e ferido
lutava para se manter consciente e ter alguma chance de sobreviver. Volta e meia seus braços escorregavam e ele
quase afundava, mas logo ganhava novas forças, erguia a cabeça e tentava inutilmente dirigir o tronco para uma
das margens.
De repente, no período de silêncio que se seguia a cada trovão, ele começou a ouvir um barulho inquietante,
que ficava mais e mais próximo. Uma fumaça esquisita se erguia à frente, e ele então compreendeu: era uma
cachoeira! [...]
Num pulo desesperado, agarrou o ramo de uma árvore que ainda se mantinha de pé perto da margem e soltou
o tronco flutuante, que seguiu seu caminho até a beira do precipício e nele mergulhou descontrolado.
A tempestade prosseguia e cegava o garoto, o rio continuava seu curso feroz e a cachoeira rosnava bem perto
de onde ele estava. De repente, percebeu que a distância entre uma das margens e o galho em que se pendurava
talvez pudesse ser vencida com um pulo. Deu um jeito de se livrar da camisa molhada, que colava em seu corpo e
tolhia seus movimentos. Respirou fundo para tomar coragem.
Se errasse o pulo, seria engolido pela queda-d’água... mas, se acertasse, estaria a salvo. Viu que não tinha
outra saída e resolveu tentar. Tomou impulso e [...] conseguiu alcançar a margem. [...]
Ficou de pé meio vacilante e examinou o lugar em torno, tentando decidir para que lado ir. Foi quando ouviu
um rugido horrível, que parecia vir de bem perto. Correu para o lado oposto, mas não foi longe. Logo se viu
encurralado em frente a um penhasco gigantesco, que barrava sua passagem. O rugido se aproximava cada vez
mais.
Estava sem saída. De um lado, o penhasco intransponível; de outro, uma fera esfomeada que o cercava
pronta para atacar. Então, viu um buraco no paredão de pedra e se meteu dentro dele com rapidez. A fera o
seguiu até a entrada da caverna, mas foi surpreendida. Com uma pedra grande que achou na porta da gruta, o
garoto golpeou a cabeça do animal com toda a força que pôde e a fera cambaleou até cair, desacordada.
Já fora da caverna, ele examinou o penhasco que teria que atravessar antes que o bicho voltasse a si. [...]
Foi quando uma águia enorme passou voando bem baixo e o garoto a agarrou pelos pés, alçando voo com ela.
Vendo-se no ar, olhou para baixo, horrorizado. Se caísse, não ia sobrar pedaço. Segurou com firmeza as compridas
garras do pássaro e atravessou para o outro lado do penhasco.
O outro lado tinha um cenário muito diferente. Para começar, era dia, e o sol brilhava num céu sem nuvens
sobre uma pista de corrida cheia de obstáculos, onde se posicionavam motocicletas devidamente montadas por
pilotos de macacão e capacete, em posição de largada. Apenas em uma das motos não havia ninguém. A águia
deu um voo rasante sobre a pista, e o garoto se soltou quando ela passava bem em cima da moto desocupada.
Assim que ele caiu montado, foi dado o sinal de largada.
As motos aceleraram ruidosamente e partiram em disparada, enfrentando obstáculos como rampas, buracos
e lamaçais. O páreo era duro, mas a motocicleta do garoto era uma das mais velozes. Logo tomou a dianteira,
seguida de perto por uma moto preta reluzente, conduzida por um piloto de aparência soturna. [...]
Inclinando o corpo um pouco mais, o garoto conseguiu acelerar sua moto e aumentou a distância entre ele e
o segundo colocado. Mas o piloto misterioso tinha uma carta na manga: num golpe rápido, fez sua moto chegar
por trás e, com um movimento preciso, deu uma espécie de rasteira na moto do garoto.
A motocicleta derrapou e caiu, rolando estrondosamente pelo chão da pista e levantando uma nuvem de
poeira. O garoto rolou com ela e ambos se chocaram com violência contra uma montanha de terra, um dos
últimos obstáculos antes da chegada. A moto negra ganhou a corrida, sob os aplausos da multidão excitada, e o
garoto ficou desmaiado no chão.
Com um sorriso vitorioso, Eugênio viu aparecer na tela as palavras FIM DE JOGO. Soltou o joystick e limpou na
bermuda o suor da mão. [...]
Laura Bergallo. A criatura. São Paulo: SM, 2005.
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