O encontro com o si mesmo
Fico pensando que o problema não é não saber o que é o si mesmo, mas agir como se soubesse. Identificar-se muito com esse eus inventados socialmente, achando que essas montagens correspondem perfeitamente a nós mesmos. Tomar as coisas em si da vida, entre elas o nosso si mesmo, como fenômenos que podemos agarrar completamente com “nossas mãos grossas, cheias de palavras”, como escreve Clarice Lispector em A paixão segundo G. H.
A vida não cabe em classificações. Ela é solta, ela é - e nós a classificamos, a separamos em categorias, a definimos para entende-la. Eu e você, nós somos – e com a maneira vamos nos categorizando, categorizando nossas relações, nossos sonhos e desejos – assim vamos nos perdendo de nós mesmos. Como, muitas vezes, nossas categorias são apressadas, desvitalizadas, confinadas em receios de toda a espécie, nos perdemos para longe. O mundo fica distorcido, a vida comprimida em categorias muito achatadas, privadas de sua exuberância e força.
O si estruturada, é desconhecido – não é uma construção, é uma descoberta. “Seja você mesmo!” “Quem você vai ser hoje?” Esses imperativos que vemos em tantos discursos contemporâneos, ora implícitos, ora escancarados, não costumam nos guiar no sentido de uma autorrevelação, mas de uma construção rumo ao “sucesso” e outras narrativas que nos atiram para longe de nós mesmos porque consistem nisso, invenções, ficções que talvez sejam necessárias à permanente negociação com a vida que fazemos para habitar a sociedade tal como ela está estruturada, mas que nos confundem quando são por nós encaradas como verdades, quando são levadas muito a sério, quando entendemos que viver é nos confundir com elas e que a vida se resume aos papéis que desempenhamos e às demandas da nossa espiral mental.
O modo de viver distrativo, temeroso e alienado, repleto de complicações e frivolidades, sucessão de demandas e tentativas de esquecimento, é uma faceto do vivo (talvez sua face menos viva) que costuma nos sequestrar com facilidade para longe de nós mesmos. Mas o peso de ser persiste aqui dentro [...]. Na contemporaneidade, muitas vezes entendemos que a nossa subjetividade é rasa, nossos desejos são consumistas, nossos vínculos descartáveis e nossas experiências vagas interações trôpegas em um mundo enevoado. Somos cada vez mais lançados para longe da nitidez, do vívido, do peso de atravessar a vida acompanhados, transformando aqueles que encontramos e sendo transformados por eles. Somos convencidos de que viver é um ato solitário e isolado, e que o mundo que mal vemos é ameaçador e hostil. “Mas há perigos no mundo”, alguém diz. [...] Mas há mais do que isso, não há? Há um vasto mundo para além dos nossos pontos de vista individuais e de nossas expectativas, fantasias e contrariedades, assim como há, dentro de cada uma de nós, um lugar selvagem, que nunca se conformou à palavra e à vida em sociedade. [...] Que espécie de sociedade acolheria melhor esse nosso lugar selvagem? Que espécie de relações humanas abrigariam melhor a nossa interioridade plena?
Falamos para nos expressar e para nos comunicar. Quando nossa fala mais expressa nosso ser, e quando, pelo contrário, comunica algo bem diferente de que se passa em nós?
Acessamos o mundo não só com nossos sentidos e nosso intelecto, mas também com o nosso não saber? Se há uma coerência na existência, é uma coerência que não conseguimos entender completamente – e a mesma coisa se dá com nós mesmos. Mas não nos é confortável o espaço entre nós e as coisas. Procuramos preenche-lo, não deixar nenhuma linha em branco. Melhor faríamos se as deixássemos como estão ao invés de rasurarmos.
[...]
PRATA, Liliane. O mundo que habita em nós: reflexões filosóficas e literárias para tempos (in)tensos. São Paulo: Instante, 2019. p. 117-120.
ATIVIDADES
1. Qual é a temática do texto escrito por Liliane Prata? 2. Retire do texto 10 palavras-chave.
3. Na sua opinião, em que o texto contribui para o encontro com o “si mesmo”? Justifique sua resposta.
4. Pesquise o que é um mapa conceitual. A partir da pesquisa sobre o que é? Como se constrói um mapa conceitual? Retome as palavras-chave que sintetizem a temática, estabelecendo uma hierarquia entre elas.
Soluções para a tarefa
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Não entendi. Porque vocês não escrevem melhor?
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