O defunto inaugural
Relato de um fantasma
Aníbal Machado
a Rodrigo M. F. de Andrade
[...]
Deve ser pouco mais de meio-dia. Tomara que o
nosso rumo seja no sentido contrário ao dessa
sombra. Conquanto para a minha pele seja
indiferente sol ou chuva, prefiro a vertente de cá,
onde deve ter ficado o molde irregular das patas
da alimária1
.
Os homens param. Depois se decidem: será
mesmo pela estrada nova! Tal como eu queria.
O dia clareou bonito. Nunca o vira assim.
Estou feliz. Circulo nele agora, participo-lhe da
atmosfera.
Vem subindo Josefina com a criança ao colo.
Eu queria dar-lhe bom-dia, mas não posso. Se
ela soubesse quem vai aqui!... Passou sem
desconfiar...
Na ponte provisória um dos homens falseia o pé,
e meu corpo rola. Vão pescá-lo mais adiante.
Tive receio de que o deixassem seguir com as
águas. Já começo a ser menos indiferente ao
destino de minha carcaça.
Ao longe — mancha de sangue na vegetação
— uma bomba de gasolina. A primeira instalada
nestes ermos de montanha. Depois, a estalagem.
O dono grita, ao dar com os meus despojos:
— Que há lá em cima que estão mandando
defuntos cá para baixo? Já é o segundo!...
Os homens não respondem. Desanimaram não
sei por quê. Quererão largar-me ali mesmo,
nalguma grota2
, tal como me encontraram. Se
fosse antes, não me importaria. Mas já agora
nasce em mim um capricho: chegar primeiro,
ganhar a corrida. Eles prosseguem mais
soturnos3
.
A que distância andaria o outro? Foi um tropeiro
que informou mais adiante: — Cruzei com ele
há coisa de duas léguas da Igrejinha; levantei o
1 Qualquer animal; besta de carga.
2 Cavidade; depressão; buraco.
3 Tristonho; que demonstra melancolia ou tristeza.
lenço. Imagine quem era? O Antão, caçador de
parasitas. Catingando já, coitado...
E reconhecendo a qualidade da mercadoria que
ia na rede: — Se vosmecês querem chegar na
dianteira, carece andar ligeiro. A festança vai
ser de arromba. Só estão esperando o material.
Parece que pagam bem. Comprar defunto pra
cemitério, foi coisa que nunca vi! concluiu o
tropeiro soltando uma gargalhada. E depois de
relancear o meu corpo embrulhado no lençol:
— Óiá! o pé dele tá aparecendo!...
Agora sim, compreendo por que, e sei para onde
me estão carregando: fizeram cemitério nalgum
lugar, mas faltou defunto para inaugurá-lo. Daí o
pedido às redondezas. Que cemitério será?
O dia vinha escurecendo. Os homens tinham
agora pela frente uma planície animada de
sapos e pirilampos.
— Engulam a cachaça, disse eu, já impaciente.
E toquem depressa!
Minha voz não ressoa, mas produz efeito. Tanto
assim que os homens empunham logo o pau da
rede e me erguem aos ombros.
E eu vou seguindo, o rosto voltado para a
primeira estrela.
Um era careca, o outro tinha bigode.
Atravessaram o pântano. Se não conhecessem
tão bem o caminho, ficaríamos os três atolados
na lama. Quase não se falavam.
— Espanta a varejeira da testa, gritei para o
careca... Isto é, quis gritar. O homem sacudiu a
cabeça.
— Por menos de quatrocentas pratas, nós
voltamos com ele, disse o de bigode.
— Até trezentos, a gente fecha o negócio,
responde o careca.
— Vosmecê vê que ele nem tá cheirando!...
Era a minha vantagem sobre o concorrente.
Pelo que percebi da conversa deles, e pela
marcha batida em que vínhamos, o outro devia
ser alcançado na curva do Bananal, antes de o
sol raiar. A esse pensamento, trocaram-me de
ombro e apressaram a marcha.
[...]
Questão 03
Percebe-se o efeito de ironia no conto, quando
A) um fantasma pensa que pode falar com os seus carregadores.
B) uma grande festa é realizada para inaugurar o novo cemitério.
C) uma mulher sequer desconfia quem seria o tal defunto.
D) um homem passa a valer mais morto do que vivo.
Soluções para a tarefa
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2
Resposta:
d) valeu mais que um vivo... ainda nem está cheirando...
Respondido por
0
a resposta é D.........
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