Lar, doce lar • Ilka Brunhilde Laurito
O amor entre eles era difícil e cheio de arestas. O avô, solitário depois da morte da mulher, queixava-se da empregada, que lhe controlava os passos, e da neta, que não respeitava seus cabelos brancos. A neta, esta reclamava do avô, que vivia repetindo sempre a mesma pergunta: "Que dia é hoje?". O neto, impaciente, preparava cartazes com as datas, que colocava debaixo do nariz do avò a cada dia. E entre avô, neta e neto, circulava a empregada, resmungando que, se não tivesse tantos anos de casa e apego ao menino, que vira nascer, já teria ido embora, cansada de descobrir tudo sujo logo após a sua limpeza: "Eles trazem bichos para cá e sou eu que tenho de cuidar”.
Os bichos, estes eram os moradores mais tranquilos da
casa: duas cachorras, o gato e o papagaio, fora os animais em trânsito, como cães de amigos, hamsters e o bando de pintinhos que a garota prendera no banheiro, como cobaias para o seu trabalho de Biologia. O avô abrira a porta, seus ouvidos tinham tido um sobressalto com o coro inusitado de piu-pius. Aliás, o que o avò tinha de mais apurado eram os ouvidos, que supriam a deficiência da vista, que o impedia de ler e de ver televisão. Não se podia falar baixinho, que ele logo reclamava: "Que foi?... que foi?". Isso sem falar nas falhas da memória, cada vez mais acentuadas: "Que dia é hoje?... que dia é hoje?..". Ao que a garota, frequentemente, explodia:
"Não agüento mais!.. Algum dia vou embora desta casa!"
Mas, antes de ir, tinha de escutar as ponderações da mãe, separada do marido e funcionária pública, que passava o dia trabalhando: "Pode ir, assim que arrumar emprego. Ou acha que vou sustentar você a vida inteira?…”
Indiferentes aos atritos, conviviam pacificamente os bichos da casa. As duas cachorras - uma delas já bastante doente - passavam o dia dormindo na lavanderia e atravancando o caminho de quem se dirigia ao quintal, onde o papagaio atormentava a vizinhança: "Loro! Loro!" Enquanto isso, o gato passeava impassível pela sala, enrodilhando-se numa das poltronas ou alcançando de um salto o parapeito da janela, de onde ficava observando a rua. E assim a vida corria entre resmungos recíprocos, gritos, latidos, miados e currupacos, numa harmonia dissonante que já havia virado rotina. Mas, como toda rotina um dia se quebra, isso aconteceu na tarde em que a garota ligou chorando para a mãe, no serviço: "Corre aqui! A Vupt está morrendo!". A mãe chegou esbaforida, mas só teve tempo de fechar os olhos da cachorra, inerte no chão da cozinha, ao lado da companheira que lhe farejava a morte num ganido triste. O gato circundava o corpo, sem miar, enquanto, no quintal, o papagaio parecia ter-se calado em sinal de luto. Até que o avô, que se postara diante de uma cena que não conseguia vislumbrar direito, quebrou o silêncio: "Que dia é hoje?...". Então a neta, limpando os olhos marejados, respondeu com inesperada doçura: "Hoje é sexta-feira, vovo". E ficaram todos ali, unidos pelo mesmo afeto e reverência, ao redor da morte de um dos membros da família.
RESPONDA:
1. Qual o gênero literário e textual?
2. Escreva o assunto principal é um comentário com argumentação.
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Resposta:
1_Qual o gênero literário e textual?
poema
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