Eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
[...]
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E, se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. p. 9 (com alterações).
01. A compreensão global do texto permite afirmar que ele trata do
(A) comodismo das pessoas a fatos com os quais não deveriam se acostumar.
(B) comodismo das pessoas no que diz respeito a moradias inapropriadas.
(C) comodismo das pessoas em relação às guerras.
(D) comodismo das pessoas no que toca à preservação da própria pele.
(E) comodismo das pessoas para evitar feridas e sangramentos.
02. A ideia de comodismo sugerida no texto é evidenciada a partir da seguinte estratégia da autora:
(A) Uso de linguagem informal.
(B) Repetição de palavras e de estruturas sintáticas.
(C) Uso de gírias.
(D) Uso de palavras difíceis.
(E) Uso da primeira pessoa do singular em todo o texto.
03. Quanto à colocação pronominal no trecho “Se acostuma para evitar feridas”, é INCORRETO afirmar que
(A) a colocação proclítica se justifica no trecho em questão por se tratar de um texto informal.
(B) a colocação enclítica poderia também ter sido utilizada.
(C) a colocação mesoclítica não poderia ter sido utilizada.
(D) a colocação proclítica é inadmissível em qualquer tipo de texto escrito.
(E) a colocação mesoclítica poderia ter sido utilizada se o verbo estivesse no futuro de presente ou do pretérito.
04. O vocábulo “duro” pode ser substituído no texto por:
(A) rígido.
(B) concreto.
(C) sólido.
(D) difícil.
(E) firme.
05. Sobre os muitos usos de “a gente”, é CORRETO afirmar que
(A) é um erro cometido pela autora.
(B) deveria ser grafado junto: “agente”.
(C) evidencia o tom coloquial/informal do texto.
(D) pode ser trocado sem nenhuma modificação sintática pelo pronome “nós”.
(E) não inclui a autora no universo de “a gente”.
06. O vocábulo “ônibus” é acentuado pela mesma regra de uma das opções abaixo:
(A) está
(B) café
(C) dá
(D) sanduíche
(E) números
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