ALICERCE (Geni Mariano Guimarães)
Meu pai chegou do trabalho na lavoura, tirou do ombro o bornal com a garrafa de café vazia e sentou-se
num degrau da escada da porta da cozinha.
Pediu-me que fosse buscar o rolo de fumo de corda, que ia, enquanto esperava o jantar, preparar os cigarros
para a noite e o dia seguinte.
Eu trouxe e ele, ao desembrulhar o fumo, deu com a cara do Pelé sorrindo no jornal do embrulho. Enquanto
desamassava o papel para ver melhor, disse-me:
— Este sim, teve sorte. Lê aí pra mim, filha. Fala devagar, senão eu não decifro direito.
Peguei o jornal e comecei a ler o comentário que contava façanhas esportivas e dava algumas informações
sobre a vida fantástica do jogador. Muitas palavras eu não sabia do significado, mas adivinhava quando
olhava no rosto do meu pai e ele soltava ameaços de risos, sem tirar o olho da mão trêmula que picava o
fumo.
Quando terminei a leitura, ele disse:
— Benzadeus. Você viu só, minha filha? Era assim como nós. O pai dele é que deve não se caber de
orgulho. Ver um filho assim, acho que a gente até esquece das durezas da vida.
Deu um suspiro comprido e acrescentou:
— Se a gente pelo menos pudesse estudar os filhos...
Senti uma pena tão grande do meu velho, que nem pensei para perguntar:
— Pai, o que que mulher pode estudar?
— Pode ser costureira, professora... — Deu um risinho forçado e quis encerrar o assunto.
— Deixemos de sonho.
— Vou ser professora — falei num sopro.
Meu pai olhou-me, como se tivesse ouvido blasfêmia.
— Ah! Se desse certo... Nem que fosse pra mim morrer no cabo da enxada. Olhou-me com ar
de consolo. — Bem que inteligência não te falta.
— É, pai. Eu vou ser professora.
Queria que ele se esquecesse das durezas da vida.
Quando já cursando o ginásio eu chegava com o material debaixo do braço, via-o esperando por mim no
início da estrada, na entrada da colônia.
Num desses dias, quando atravessávamos a fazendinha e falávamos sobre o meu estudo, ele me disse:
— Tem que ser assim, filha. Se a gente mesmo não se ajudar, os outros é que não vão.
Nisto ia passando por nós o administrador, que ao parar para dar meia dúzia de prosa, cumprimentou meu
pai e disse:
— Não tenho nada com isso, seu Dito, mas vocês de cor são feitos de ferro. O lugar de vocês é
dar duro na lavoura. Além de tudo, estudar filho é besteira. Depois eles se casam e a gente mesmo...
A primeira besteira ficou sem resposta, mas a segunda mereceu uma afirmação categórica e maravilhosa,
que quase me fez desfalecer em ternura e amor.
— É que eu não estou estudando ela para mim — disse meu pai. — É pra ela mesma.
O homem deu de ombros e saiu, tão lentamente que quase ouviu ainda meu pai segredando:
— Ele pode até ser branco. Mas, mais orgulhoso do que eu não pode ser nunca. Uma filha professora ele não
vai ter.
Sorriu, tomou minha mão e continuamos a caminhada.
— Pai, que cor será que é Deus...
— Ué... Branco — afirmou.
— Mas acho que ninguém viu ele mesmo, em carne e osso. Será que não é preto...
— Filha do céu, pensa no que fala. Tá escrito na Sagrada Escritura. A gente não pode ficar blasfemando
assim.
— Mas a Sagrada Escritura...
Ele olhou-me reprovando o diálogo e, porque não podia ir mais longe, acrescentei apenas:
— É que se ele fosse preto, quando ele morresse, o senhor podia ficar no lugar dele. O senhor é tão bom.Em toda a minha vida, nunca havia visto meu pai rir tanto.
Riu um riso aberto, amplo, barulhento. Assim foi rindo até chegar em casa e, quando minha mãe olhou-o de
soslaio, disse para os meus irmãos:
— Com certeza viu passarinho verde.
Como ele não parava de rir, todos aderiram e a sala ficou agitada e alegre.
Foi quando me escapou a emoção, dei um passo comprido e beijei a barriga da minha mãe. Diante do gesto
incomum, todos ficaram me olhando, meio jeito de espanto.
Fiquei envergonhada e fingi que tirava, com a unha, uma casquinha de coisa nenhuma escondida entre os
dentes do fundo.
In: Geni Guimarães. Leite do peito: contos. São Paulo: Fundação Nestlé de Cultura, 1988, pp. 73-79.
1 - É professora, poeta e escritora. Nasceu no município de São Manuel (SP), em 8 de setembro de 1947. Iniciou a
carreira literária escrevendo para jornais no interior paulista, onde envolveu-se com questões socioculturais do campo
e reflexão em torno da literatura negra. Escreveu vários livros: Terceiro filho, Balé das emoções, A dona das folhas, A
cor da ternura, Leite do peito, O rádio Gabriel (infantil), Aquilo que a mãe não quer (infantil). Também publicou na
série “Cadernos Negros” e participou de algumas antologias
1. Que aspecto da vida de Geni Guimarães está sendo retratado neste conto?
2. Do conto de Geni, escolha um aspecto que poderia ser transformado em crônica e explique porque esse trecho daria uma boa crônica?
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