Trecho de O Cortiço – Aluísio de Azevedo
“Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e
janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam
ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se
à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.
A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão
ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil,
mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o
marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente
do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os
bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das
casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava,
destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de
galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a
gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-
se à luz nova do dia.
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e
fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de
uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não
as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo
todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário
metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando
contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante,
um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias;
as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por
detrás da estalagem ou no recanto das hortas.
O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes
dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda;
ensarilhavam-se discussões e rezingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-
se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés
vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar
sobre a terra.”
Questão interpretativa:
Um livro da fase realista/naturalista da literatura brasileira: O Cortiço pertence ao grupo dos romances artísticos
e é uma de suas maiores obras. Nele se vê a constante preocupação com as questões sociais, a crítica ao
capitalismo selvagem, ao conservadorismo e ao clero e a valorização dos instintos naturais. O livro narra a vida
de moradores de uma habitação coletiva miserável. Aluísio Azevedo analisa de modo objetivo e extremamente
realista diversos tipos humanos. O homem é mostrado de forma crua, com todos os seus vícios e defeitos mais
sórdidos.
O traço mais marcante da obra é a constatação de que o homem é produto do meio em que vive. A vida dos
personagens do livro se entrelaça e o Cortiço – meio em que vivem – é o núcleo gerador de todos os
acontecimentos e modificações ocorridas com os seus integrantes. O próprio cortiço, na verdade, é
o protagonista do livro, ele fervilha e produz os tipos humanos que lá se encontram.
O Cortiço é sem dúvida uma obra imperdível. O retrato dos tipos humanos, as diversas intrigas, a descrição do
ambiente e o irônico desfecho do livro justificam a sua classificação pelos estudiosos como verdadeira obra-
prima.
Destaque no trecho do livro:
1) Características marcantes de uma habitação coletiva. Destaque duas.
2) Como era a relação entre os moradores do local. Justifique com trechos do texto.
3) Explique o trecho “As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante,
um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou
as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos
fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.”
4) Destaque trechos em que o ser humano é comparado a características animais.
5) Cite características do realismo e do naturalismo presentes no trecho destacado do livro.
Soluções para a tarefa
1-A habitação coletiva citada no texto é o cortiço. Duas características desse lugar são as pedras do chão esbranquiçadas e as portas e janelas alinhadas.
2- A relação entre os personagens era perturbada. Onde em alguns momentos se vê uma boa relação e em outros é possível ver um cenário de brigas.
3- O trecho explica que a todo momento havia gente saindo e entrando no lugar.
4- Um dos trechos onde vemos a comparação de atitudes humanas com a de animais é:
" se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir..." (O Cortiço – Aluísio de Azevedo)
5- Como característica do realismo vemos a apresentação de fatos verídicos sem a romantização dos mesmos. Como característica do naturalismo vemos as descrições minuciosas feitas por Aluísio de Azevedo.