Todo Mundo e Ninguém
Carlos Drummond de Andrade
Ninguém Tu estás a fim de quê?
Todo Mundo A fim de coisas buscar
que não consigo topar.
Mas não desisto, porque
o cara tem de teimar.
Ninguém Me diz teu nome primeiro.
Todo Mundo Eu me chamo Todo Mundo
e passo o dia e o ano inteiro
correndo atrás de dinheiro,
seja limpo ou seja imundo.
Belzebu Vale a pena dar ciência
e anotar isto bem,
por ser fato verdadeiro:
Que Ninguém tem consciência,
e Todo Mundo, dinheiro.
Ninguém E que mais procuras, hem?
Todo Mundo Procuro poder e glória.
Ninguém Eu cá não vou nessa história.
Só quero virtude... Amém.
Belzebu Mas o papai não se ilude
e traça: Livro Segundo.
Busca o poder Todo Mundo
e Ninguém busca virtude.
Ninguém Que desejas mais, sabido?
Todo Mundo Minha ação elogiada
em todo e qualquer sentido.
Ninguém Prefiro ser repreendido
quando der uma mancada.
Belzebu Aqui deixo por escrito
o que querem, lado a lado:
Todo Mundo ser louvado
e Ninguém levar um pito.
Ninguém E que mais, amigo meu?
Todo Mundo Mais a vida. A vida, olé!
Ninguém A vida? Não sei o que é.
A morte, conheço eu.
Belzebu Esta agora é muito forte
e guardo para ser lida:
Todo Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.
Todo Mundo Também quero o Paraíso,
mas sem ter que me chatear.
Ninguém E eu, suando pra pagar
minhas faltas de juízo!
Belzebu Para que sirva de aviso,
mais uma transa se escreve:
Todo Mundo quer Paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo Mundo Eu sou vidrado em tapear,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém A verdade eu sempre digo
sem nunca chantagear.
Belzebu Boto anúncio na cidade,
Todo Mundo é mentiroso
e Ninguém fala verdade.
Ninguém Que mais, bicho?
Todo Mundo Bajular.
Ninguém Eu cá não jogo confete.
Belzebu Três mais quatro igual a sete.
O programa sai do ar.
Lero lero lero lero,
curro paco paco paco.
Todo Mundo é puxa-saco
e Ninguém quer ser sincero!
Carlos Drummond de Andrade. Discurso de primavera. In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988. p. 844.
Neste poema, Drummond faz uma paródia de um texto muito conhecido de Gil Vicente, autor português do século XVI.
Gil Vicente – 1465(?)-1536(?) – é considerado o criador do teatro em língua portuguesa. Entre suas obras mais conhecidas estão as peças Quem tem farelos?, Farsa de Inês Pereira, O velho da horta (farsas), Auto da barca do inferno e Auto da Lusitânia. Nesta última encontramos o diálogo “Todo o Mundo e Ninguém".
Os efeitos de humor do texto são conseguidos sobretudo pelos contrastes.
a) Releia o texto e faça uma lista de valores opostos buscados pela duas personagens principais do texto.
b) Explique o contraste que se estabelece entre as falas das personagens, que têm uma presença física na representação teatral, e as anotações de Belzebu. Utilize o seguinte exemplo:
Todo Mundo Eu sou vidrado em tapear,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém A verdade eu sempre digo
sem nunca chantagear.
Belzebu Boto anúncio na cidade,
Todo Mundo é mentiroso
e Ninguém fala verdade.
Soluções para a tarefa
Resposta:
a) Listas:
b) Quando a personagem diz que gosta de mentir ou tapear, ou que sempre diz a verdade, temos características e ações individualizadas, ou seja, pertencentes às personagens que atuam no palco. Nas anotações de Belzebu, essas características deixam de ser das personagens, passando a pertencer aos significados delas, ou seja, aos seres em geral representados pelos pronomes indefinidos todo mundo e ninguém. É nesse contraste entre a fala das personagens e os comentários de Belzebu que se efetivam os significados alegóricos das personagens. Deve-se observar também que a fala da personagem Ninguém é afirmativa (A verdade eu sempre digo, mas, no comentário de Belzebu, ela se torna negativa: Ninguém fala verdade).
Explicação:
PLURALL