Texto 2
Ladrões no terraço
Carlos Drummond de Andrade
1 — Tem paciência, filhinha, já decidi. Hoje vamos ao cinema de qualquer maneira.
2 — Mas, Dago, ainda não preparei os sanduíches para o aniversário do Guilherme...
3 — O Guilherme que pare de fazer anos e de dar festa com sanduíches divinos-maravilhosos. Ao cinema!
4 — E o Barriga? A gente vai deixar o garoto sozinho em casa? Ele é de morte.
5 — Chame o Italianinho do 301 para fazer companhia a ele. Assim o Barriga sossega. Ao ci-ne-ma!
6 Dona Neusa sempre achando razões para ficar em casa, trabalhando. Cinema ali pertinho, inaugurado há um mês, filme de Buñuel chamando, marido insistindo. E quando o marido escande sílabas, mesmo sendo ótimo como aquele, paira ameaça sobre o casamento. Ela cedeu.
7 Italianinho acudiu pressuroso ao chamado. No 301, também os pais haviam saído, e a patota de adolescentes curtia uma festinha à base de som incrementado e luzes psicodélicas, de que, obviamente, estavam excluídos os menores de 12 anos.
8 — Que que a gente vai fazer?
9 — Atirar setas e bolinhas na rua. Bolinhas nos carecas e setas nas perucas das coroas.
10 — Só nos carecas e nas coroas, não. Em todo mundo.
11 — Tá.
12 Subiram os dois, de mansinho, pela escada de serviço, munidos de zarabatanas, bolinhas, setas e muita disposição. A chuvinha ranzinza peneirava, eles nem sentiam. E começou o ataque silencioso na noite. Não tão silencioso, pois correndo de um lado para outro, esbarrando aqui e ali, emitindo ruídos abafados de prazer quando atingiam o alvo, dava para perceber que alguma coisa de estranho se passava no terraço.
13 Juju, de ouvido afiado, num instante em que o som amortecia na festa, correu ao apartamento de seu Ivo:
14 — Está na hora da batida.
15 — Que batida? Vocês prometeram que só haveria chopinho. E o síndico não permite festa de brotos com batida. Tem gente mexendo no terraço. Escute.
16 Escutou. Mexiam e paravam. Mexiam e paravam. Ladrões, na certa. Havia dias que vinham frequentando os terraços de edifícios daquele trecho da rua, limpando antenas, canos, torneiras, roupas, tudo. Alertados, síndicos e condôminos planejaram um serviço de vigilância. Ao menor sinal suspeito, os próprios moradores de cobertura dariam caça aos larápios, já que os vigias noturnos, como se sabe, têm sono pesado.
17 Seu Ivo achou prudente telefonar para os moradores das coberturas vizinhas, que compareceram imediatamente. Subiram os três, cada um de calibre 45 em punho. Entreaberta a porta do terraço, detiveram-se no penúltimo degrau, à espreita. Sentindo a aproximação de gente (ladrões, sem dúvida), Barriga e Italianinho, tomados de pânico, meteram-se na casa de máquinas. Ladrões avançando, ladrões se escondendo dos outros ladrões – era a situação, debaixo de chuva mansa, durante um silêncio de 10 minutos.
18 — Não vão ficar a noite inteira na casa de máquinas – ponderou seu Ivo. – Esperemos.
19 E continuaram os três, respiração suspensa, mão no gatilho, aguardando.
20 Concluindo que se tratava de alarme falso, Italianinho e Barriga foram saindo de leve, pé ante pé, agachados junto à mureta.
21 — É agora – comandou baixinho seu Ivo. – Vamos atirar pra valer, mas nos pés.
22 As armas foram baixando lentamente, para a pontaria. Súbito, seu Ivo exclamou, trêmulo, gago:
23 — Não atirem! Não é o que nós pensamos!
24 — Está doido, seu...?
25 Seu Ivo reconhecera o Barriga, pelo volume abdominal característico. Entraram rápido no terraço, em direção contrária à dos meninos, para pegá-los desprevenidos. Os dois tentaram fugir, no passo de ema selvagem. Mas Italianinho sentiu uma coisa úmida e cálida escorrer-lhe pelo short, e quedou-se, desamparado, enquanto Barriga dava no pé.
26 Os homens estavam pálidos.
27 — Quase que nós matávamos esses diabos!
28 Voltando do cinema, dona Neusa comentou:
29 — Viu, Dago? Viu no que dá essa mania de ir ao cinema? A gente paga para ver Catherine Deneuve de perna cortada, e na volta, por pouco pouco, encontra nosso filhinho defunto!
Carlos Drummond de Andrade. De notícias e não-notícias faz-se a crônica. In Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988. p. 1834.
Leia o texto observando o seguinte esquema de segmentação:
Nesta crônica, Drummond manipula a ordenação temporal. Observe que, além disso, entre um segmento e outro ele estabelece uma alternância de espaços (apartamentos e terraço) e de pontos de vista do narrador.
a) Qual é o foco narrativo da crônica?
b) Releia os segmentos 5 e 6. O narrador assume o ponto de vista de quais personagens, em cada um desses segmentos?
c) Ao longo da crônica, até o ponto culminante, o autor alterna o ponto de vista do narrador, como você observou entre os segmentos 5 e 6. Que efeito o autor pretende com essa estratégia narrativa? Explique.
d) Em que segmento ocorre o ponto culminante da narrativa? Justifique sua resposta.
Soluções para a tarefa
Resposta:
a) Foco narrativo em terceira pessoa onisciente.
b) No segmento 5 ele assume o ponto de vista do grupo de vigilantes chefiado por Seu Ivo; no segmento 6, o dos meninos, Barriga e Italianinho, que brincavam no terraço.
c) Ele pretende, com essa alternância, aumentar a expectativa e criar o suspense. Narra os acontecimentos do terraço, onde Barriga e Italianinho brincam inocentemente, e, concomitantemente, revela as intenções e desconfianças de Seu Ivo. Com a mudança do ponto de vista, portanto, o leitor acompanha, alternadamente, os movimentos dos dois grupos e aguarda a tragédia. A expectativa só se desfaz após o ponto culminante.
d) O ponto culminante localiza-se no segmento 7. Ao longo de toda a crônica gerou-se uma expectativa em relação ao encontro dos dois grupos – vigilantes e ladrões –, que ocorre, enfim, nesse segmento. No parágrafo 21, Seu Ivo comanda o ataque, e, no parágrafo 22, as crianças estão sob a mira dos atiradores.
Explicação:
Plurall