TENTAÇÃO
1/09/20 - 15 dias
Clarice Lispector
Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva. Na rua
vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela
suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse
seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se
apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento
contra desalento. Na rua deserta nenhum
sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta
involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher?
Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa
velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os
joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de
comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um
cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado,
cachorro.
A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava.
Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao
mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada,
séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela
passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia
tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento,
surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio
de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina,
como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um
instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele,
com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu
sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe
compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos,
até vê-la dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás
Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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