SOBRE O TEXTO: A ESPERANÇA COMO DEVER
A esperança como dever
[...] Não leia. Pare. Olhe. Ali, adiante. Mais à frente. Um carro voando. Um foguete a 150 por hora. Chispando,
zunindo. Soltando faísca. Um brilho no rastro azul. Zás. Pura adrenalina. Verniz derrapando. Borracha queimando,
lambendo o asfalto. A cena voa. Corações galopam.
Um carro passa a mais de 100 km. Suponha. Imagine. Dois observadores emudecem, assombrados. Ali adiante, a
200 metros de onde estão os observadores, há um buraco no meio da estrada. O primeiro observador acredita que
ainda haja tempo para desviar e que o motorista possa evitar o acidente, reduzindo a velocidade e contornando o
buraco. Intui a salvação. Aposta nisso. O outro pensa o contrário: o motorista não percebeu o que vai encontrar pela
frente; o acidente é inevitável. Ambos se agitam. Gritam. Mal expressam suas avaliações.
Em poucos segundos, o carro se arrebenta no buraco que o engole. Digamos que o acidente aconteça. Suponhamos
que isso tenha acontecido. Isso quer dizer que o segundo observador estava certo? A existência do acidente dá razão a
quem o previra? O fato de que o carro tenha caído no buraco desautoriza aquele que formulou a hipótese de que não
haveria acidente? O acidente justifica a desqualificação do primeiro observador como equivocado? Pode‐se dizer que,
julgando‐se as previsões a partir da realidade já configurada do acidente, a hipótese de que ele não aconteceria estava
errada? Não expressaria nada mais que um otimismo ingênuo? Em outras palavras, o futuro é um tribunal infalível
sobre as verdades das previsões a seu respeito? O futuro, quando se torna presente, é o árbitro irrefutável das
profecias?
A melhor resposta seria: não necessariamente. Depende. Quando a situação observada ainda permite a
intervenção de um fator incontrolável e imprevisível (como a ação humana, no caso do acidente), cuja participação tem
o poder de alterar um ou outro sentido o destino do processo observado, as duas previsões são igualmente legítimas,
plausíveis, razoáveis ou racionais. Ou seja, nenhuma hipótese pode ser excluída; tanto a hipótese otimista quanto a
pessimista são realistas, isto é, são corretas enquanto hipóteses – ainda que o fato de serem corretas não garanta que
suas previsões venham a ser confirmadas. [...]
Se, do ponto de vista racional, uma hipótese positiva não pode ser excluída, do ponto de vista ético, ela deve ser
adotada. É nisso que acredito, quando está em jogo a vida humana, sua trajetória individual. Ou seja, a esperança é um
imperativo ético, quando não desautorizada pela razão. Dito isso, consideremos uma situação comparável à dos carros.
Um jovem está envolvido com o tráfico. Cometeu crimes. Mergulhou nesse mundo e passou a adotar a violência como
forma de se afirmar e de impor aos outros sua vontade. Dois observadores fazem conjecturas opostas sobre o futuro
desse personagem. O primeiro crê na recuperação, isto é, na adesão do personagem à vida social regida pelas normas
legais. O segundo acredita que a viagem ao mundo do crime não tem retorno e que o processo invariavelmente
conduzirá o personagem cada vez mais fundo no abismo da violência, da destruição e da autodestruição. [...] Se o
personagem frustrar a esperança do primeiro observador e voltar a cometer crimes, esses crimes futuros demonstrarão
o erro de quem confia na mudança? [...] Ou a esperança nunca será desautorizada, enquanto houver vida, enquanto
existir alguma centelha de liberdade no espírito desse criminoso? [...]
Nós poderíamos dizer: um ato não abolirá jamais a incerteza, a liberdade humana e a possibilidade de mudança.
Um ato é um compromisso entre liberdade e necessidade – por isso mesmo, traz consigo sempre, em algum nível, a
marca da liberdade. Por mais perverso que seja, um ato jamais cobrirá todo o repertório potencial das ações de um
sujeito, porque, sendo o sujeito livre, esse repertório é infinito. [...]
(Celso Athayde; M. V. Bill; Luiz Eduardo Soares. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005
Questão 1
O Primeiro parágrafo do texto é construído com frases curtas e expressivas que descrevem ações, introduzindo uma situação narrativa. Identifique as frases que apresentam as seguintes características;
a) verbos no modo imperativo, que convidam o leitor a imaginar uma determinada cena;
b) expressões indicativas de lugar, para aproximar o leitor da referida cena;
c) expressões que destacam reiteradamente as ideias de movimento e velocidade.
Soluções para a tarefa
a) verbos no modo imperativo, que convidam o leitor a imaginar uma determinada cena;
Os verbos no imperativo têm como objetivo induzir o leitor a alguma ação, sendo quase que uma ordem, como podemos observar lendo o seguinte trecho: "Não leia. Pare. Olhe. Ali, adiante. Mais à frente. "
b) expressões indicativas de lugar, para aproximar o leitor da referida cena;
As expressões indicativas de lugar podem ser destacadas como as seguintes: "Dois observadores emudecem, assombrados. Ali adiante". Esse trecho garante ainda aproximação do leitor com o texto.
c) expressões que destacam reiteradamente as ideias de movimento e velocidade.
As ideias de movimento e velocidade podem ser notadas claramente nos seguintes trechos:
A cena voa. Corações galopam.
Um carro passa a mais de 100 km.
reduzindo a velocidade