sexualidade entre o biológico e o cultural
Soluções para a tarefa
Recentemente a presença de uma questão no Exame Nacional do Ensino Médio [ENEM/2015] que partia de um trecho da obra O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, foi alvo de um sem número de manifestações, motivando polemicas discussões, seja entre jovens estudantes nas redes sociais, seja repercutindo nas declarações de políticos intencionados em questionar a formulação do exame. Algo que parece revelador nesse mar de opiniões, nem sempre muito diversas, é a ausência de clareza quanto ao problema de fundo da questão formulada; muitas vezes sua “análise” parece conduzida por critérios meramente taxativos e se restringe a classificações superficiais acerca do conteúdo ali proposto, acabando por manter o debate distante de sua complexidade, ou fazendo parecer que a crítica pode prescindir em grande medida de conhecimento do caso. Diante disso, é possível sucumbir diante da avalanche de opiniões, reproduzindo seus motes redutores, ou então pode-se partir para uma investigação do problema com vistas a uma crítica mais comprometida e que também amplie o aprendizado sobre a questão; e isto é o que se pretende aqui – trazer alguns apontamentos que possam ajudar na compreensão mais ampla do caso.
Publicado originalmente em 1949, o livro de Beauvoir busca firmar uma posição diante de pelo menos duas vertentes do conhecimento da sexualidade no mundo moderno ocidental: de um lado, a do saber legitimado da ciência, pela qual a sexualidade torna-se assunto a ser estudado abertamente, sobretudo do ponto de vista biológico, mas ganhando interesse também pedagógico, no sentido de discutir a normatividade dos sexos e a necessidade de uma formação para a sexualidade; e a outra vertente está embasada na moralidade que ora aprova ora desaprova certas práticas, elevando hábitos sociais a uma padronização que se pretende absoluta. A vivência da sexualidade parece envolver, assim, a conjunção de pelo menos dois fatores – o biológico e o cultural. O sexo visto sob o ponto de vista biológico, grosso modo, indica que os gêneros masculino e feminino estão ligados diretamente à constituição corpórea e física dos indivíduos – normalmente ocorre de uns nascerem com o aparelho sexual feminino e outros com o aparelho masculino. Será isso suficiente para se afirmar que uns são homens e outros são mulheres? Seria a noção de gênero fruto de determinações exclusivamente biológicas ou biogenéticas?
A chamada “questão de gênero” que tem adquirido especial interesse neste século XXI demanda repensar os papeis dos homens e das mulheres na sociedade questionando tanto o valor da normatividade sexual gerada pela cultura quanto as determinações que têm raízes naqueles fatores de ordem biológica. E uma grande influência para essa discussão vem das proposições de Beauvoir acerca da condição da mulher na sociedade. Ao afirmar que “ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher”, a autora está chamando atenção para a ideia de que não existiria uma natureza feminina de modo determinante, e que o “ser mulher” não deve ser consequência de uma essência apenas biológica ou apenas cultural, mas deve resultar de um processo de construção que só caberia a cada mulher direcionar.
Pode ser esclarecedor, nesse ponto, pensar numa das ideias fundantes do existencialismo de Sartre, que foi uma importante interlocução de Beauvoir, resumida na noção de que a existência deve preceder à essência, ou que a natureza humana não consiste em algo determinante para a sua existência, mas ela é antes produto desta. E assim como toda a condição humana pode ser pensada nesses termos, a autora quer sugerir que pensemos particularmente a condição feminina. O segundo sexo assinala, já em seu título, a condição secundária que teria sido relegada à mulher. Ela argumenta que a dominação cultural e do pensamento por parte da perspectiva do homem fez com que a mulher viesse a ser vista como um outro, um não homem. Desvelar essa condição histórica é imprescindível para a reversão dos equívocos advindos dela, resultados em diversos níveis de opressão e inibindo a construção de outras realidades pelo e a partir do feminino.