Resumo da filosofia de um par de botas
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Filosofia de Um Par de Botas
de Machado de Assis
Uma destas tardes, como eu acabasse de jantar, e muito, lembrou-me dar um passeio à Praia de Santa Luzia, cuja solidão é propícia a todo homem que ama digerir em paz. Ali fui, e com tal fortuna que achei uma pedra lisa para me sentar, e nenhum fôlego vivo nem morto.
— Nem morto, felizmente. Sentei-me, alonguei os
olhos, espreguicei a alma, respirei à larga, e disse ao estômago:
— Digere a teu gosto, meu velho companheiro. Deus nobis haec otia fecit.
Digeria o estômago, enquanto o cérebro ia remoendo, tão certo é, que tudo neste mundo se resolve na mastigação. E digerindo, e remoendo, não reparei logo que havia, a poucos passos de mim, um par de coturnos velhos e imprestáveis. Um e outro tinham a sola rota, o tacão comido do longo uso, e tortos, porque é de notar que a generalidade dos homens camba, ou para um ou para outro lado. Um dos
coturnos (digamos botas, que não lembra tanto a tragédia), uma das botas tinha um rasgão de calo. Ambas estavam maculadas de lama velha e seca; tinham o couro ruço, puído, encarquilhado.
Olhando casualmente para as botas, entrei a considerar as vicissitudes humanas, e a conjecturar qual teria sido a vida daquele produto social. Eis senão quando, ouço um rumor de vozes surdas; em seguida, ouvi sílabas, palavras, frases,
períodos; e não havendo ninguém, imaginei que era eu, que eu era ventríloquo; e já podem ver se fiquei consternado. Mas não, não era eu; eram as botas que falavam entre si, suspiravam e riam, mostrando em vez de dentes, uma pontas de tachas enferrujadas. Prestei o ouvido; eis o que diziam as botas:
Bota Esquerda — Ora, pois, mana, respiremos e filosofemos um pouco.
de Machado de Assis
Uma destas tardes, como eu acabasse de jantar, e muito, lembrou-me dar um passeio à Praia de Santa Luzia, cuja solidão é propícia a todo homem que ama digerir em paz. Ali fui, e com tal fortuna que achei uma pedra lisa para me sentar, e nenhum fôlego vivo nem morto.
— Nem morto, felizmente. Sentei-me, alonguei os
olhos, espreguicei a alma, respirei à larga, e disse ao estômago:
— Digere a teu gosto, meu velho companheiro. Deus nobis haec otia fecit.
Digeria o estômago, enquanto o cérebro ia remoendo, tão certo é, que tudo neste mundo se resolve na mastigação. E digerindo, e remoendo, não reparei logo que havia, a poucos passos de mim, um par de coturnos velhos e imprestáveis. Um e outro tinham a sola rota, o tacão comido do longo uso, e tortos, porque é de notar que a generalidade dos homens camba, ou para um ou para outro lado. Um dos
coturnos (digamos botas, que não lembra tanto a tragédia), uma das botas tinha um rasgão de calo. Ambas estavam maculadas de lama velha e seca; tinham o couro ruço, puído, encarquilhado.
Olhando casualmente para as botas, entrei a considerar as vicissitudes humanas, e a conjecturar qual teria sido a vida daquele produto social. Eis senão quando, ouço um rumor de vozes surdas; em seguida, ouvi sílabas, palavras, frases,
períodos; e não havendo ninguém, imaginei que era eu, que eu era ventríloquo; e já podem ver se fiquei consternado. Mas não, não era eu; eram as botas que falavam entre si, suspiravam e riam, mostrando em vez de dentes, uma pontas de tachas enferrujadas. Prestei o ouvido; eis o que diziam as botas:
Bota Esquerda — Ora, pois, mana, respiremos e filosofemos um pouco.
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