resenha critica bastardos inglorius
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Quentin Tarantino é, seguramente, o maior diretor pop que existe e, não tenho dúvidas em afirmar, um dos grandes diretores do cinema moderno. Seus clássicos Cães de Aluguel e Pulp Fiction são filmes com lugares garantidos na História do Cinema. Os dois Kill Bill mostram a versatilidade de Tarantino em misturar gêneros, dos filmes de kung-fu trash da década de 60 e 70 até os westerns spaghetti. A capacidade do diretor em criar diálogos e dirigir atores é algo fora do comum. Ok, é bem verdade que alguns detratores dizem que ele simplesmente copia outros filmes. É verdade, sem dúvida. Mas inspirar-se (não copiar) vários filmes ao mesmo tempo, misturando-os em uma história só ao ponto de imprimir-lhes vida própria, personalidade própria, poucos conseguem fazer, e Quentin Tarantino é um dos que fazem isso de maneira mais eficiente. Mesmo seu filme tido como o mais fraco – em minha opinião À Prova de Morte – é acima da média do que vemos por aí, demonstrando um grande controle de câmera, montagem, roteiro e trilha sonora, além da enorme capacidade da construção de um gigantesco e riquíssimo universo próprio a cada quadro que vemos na tela.
Bastardos Inglórios é a primeira tentativa do cineasta em trabalhar um filme verdadeiramente de época. Poder-se-ia dizer que o injustamente subestimado Jackie Brown é quase um filme de época, por passar-se, em espírito, na década de 70. No entanto, o 7º filme (ou 6º, se contarmos como o cineasta) de Tarantino é o primeiro a verdadeiramente passar-se em outra época, mais precisamente durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, quando achamos que o diretor está preso pelos acontecimentos históricos – afinal, mudar a História é um sacrilégio, não? – ele vem e nos dá uma incrível rasteira, daquelas que você realmente não espera e que te deixa estatelado no chão. Revendo a fita mais uma vez para escrever essa crítica, chego a perguntar-me se, mesmo diante de tantas obras-primas, Bastardos Inglórios não seria o ápice da carreira do diretor.
Peguem o primeiro capítulo do filme. Em um belo plano geral estático que aos poucos se aproxima, vemos uma bucólica paisagem na França, com um homem de barba cortando lenha e três garotas por perto de uma modesta casa. O homem é avisado por uma de suas filhas que alguém está chegando e ele pede água para lavar o rosto. O diálogo é todo travado em francês e, quando o simpaticíssimo Coronel da SS Hans Landa (Christoph Waltz) se apresenta ao fazendeiro Perrier LaPadite (Denis Ménochet), a língua regente continua sendo o francês. Já dentro da modesta casa, o coronel, sempre muito cordial, pede leite, tece elogios à família de LaPadite e ao produto das vacas do fazendeiro e pede licença para trocar para o inglês, sob a desculpa de que chegou ao limite de seu francês e pelo fato de saber que o homem tem comando da outra língua. Em seguida, aprendemos que Landa é conhecido como Caçador de Judeus e que está lá para fazer um burocrático trabalho de double check, já que uma família judia da região (os Dreyfuss) não haviam sido encontrados pelas forças nazistas em uma primeira varredura. O que segue – e sinto-me até envergonhado em escrever isso – é a mais simpática antecipação de um massacre já colocada nas telas do cinema e o horror que Tarantino deixa evidente para nós é exatamente a construção que ele fez da cena, que nos impede de, imediatamente, odiar o inteligentíssimo personagem vivido por Waltz. Sim, claro, sentimos a tristeza de LaPadite, que é forçado a entregar a família que esconde embaixo de sua casa e sim, sofremos ao ver o que está prestes a acontecer e a tensão quando notamos que Shosanna Dreyfuss (Mélanie Laurent) escapou, mas que está na mira de Landa.
Só que Tarantino sabe que fazer a audiência simpatizar com um genocida nazista é, no mínimo, um golpe baixo e, sem perder tempo, nos retira daquele universo e nos sacode novamente para o sentimento normal: ódio aos nazistas. O capítulo seguinte abre com o Tenente Aldo Raine (Brad Pitt), um caipira americano com uma enorme e completamente inexplicada cicatriz no pescoço, fazendo um excelente discurso a seus novos recrutas. Ele diz que irão para a França, atrás das linhas inimigas, aterrorizar os nazistas e que cada um deles tem que literalmente trazer de volta 100 escalpos dos inimigos.
Descrevi as duas cenas para que o leitor possa relembrar – pois presumo que todos já viram esse filme e, se não viram, deveriam parar agora e assistir – como Tarantino nos manipula. Eles nos faz testemunhar um estarrecedor massacre depois de nos apresentar ao mais “bacana” dos nazistas e, imediatamente depois, sem pestanejar, nos faz acordar do pesadelo incongruente e nos coloca com os dois pés firmes na realidade. No entanto, nos dois momentos, também testemunhamos, talvez mais intensamente do que em qualquer outro filme do diretor e roteirista, sua habilidade de criar mundos com alguns breves diálogos.