que eu desejasse sua morte. Não, não, de jeito algum. Apenas queria que ela dormisse. Explico: há mais de vinte de anos morando no mesmo lugar, tenho por vizinha uma mulher insone, que passa as noites caminhando. Eu própria tendo um sono muito leve, aquele caminhar permanente – madrugada adentro, noite após noite – é um tormento pra mim. A horas altas acordo ouvindo passos. Estremeço. E, no silêncio, me pergunto: para onde será que ela vai? Que lugar ermo é esse que a mulher solitária busca de forma incessante, entre as quatro paredes de seu apartamento?
Porque, quando começa a andar, ela não para mais. Como se buscasse algo esquecido nos recônditos de sua memória ou de seus armários, segue de um lado para outro com passos firmes, determinados – mas que parecem nunca levar a lugar algum. E a madrugada se esvai nesse caminhar sem fim, para mim e para ela.
Às vezes, tenho pena. Sei que ninguém tem culpa por não conseguir dormir. Mas o fato é que ela podia, ao menos, parar um pouco, olhar a paisagem da janela, ler, ligar a televisão. Ou podia, ainda, usar um chinelinho de pano e não aquele de salto, tec-tec-tec a noite toda nos tacos do chão. E mais: num gesto de deferência, num aceno de paz, ela podia ao menos mandar acarpetar o apartamento! Mas não. Nunca fez nada disso. Por todas as noites, nesses mais de vinte de anos, ela caminhou – e só. De dia, reina a mais absoluta quietude em seu apartamento. Nunca a vejo sair. Pouco sei sobre ela, nem lembro bem como é seu rosto. Conheço apenas seus passos, que assombram minhas noites. Mais nada.
Mas agora devo confessar uma coisa a vocês: estou narrando no tempo verbal errado. Porque a verdade é que tudo está terminado. Há pouco, no fim da tarde, chegando do trabalho, dei com o pedaço de papel pregado na parede do elevador. O enterro foi hoje, às cinco da tarde. Não, não, por favor, não me interpretem mal! Eu jamais desejei que ela morresse. Sabia que era uma mulher de mais de 70 anos, saúde frágil, com certeza minada pelas noites insones. Mas repito, não desejei sua morte, jamais. Queria apenas que ela dormisse.
E agora quem vai dormir sou eu.
Dormir! Uma noite inteira, como não faço há décadas. Preparei tudo para esta ocasião especial. Tirei do armário meus lençóis de cetim. Tomei um banho de banheira e me perfumei com a água-de-colônia alemã, a verdadeira, que tem efeito calmante. Vesti minha melhor camisola de seda e, depois do jantar, bebi um cálice de vinho do Porto. E agora estou aqui, pronta. Mas, antes de apagar a luz, queria dizer ainda uma vez que estou celebrando meu sono, não a morte dela. Não me entendam mal.
Apago a luz. E, no mesmo segundo, antes mesmo que a escuridão me envolva por completo, ouço – com toda a força e nitidez – o som de passos no andar de cima.
Heloisa Seixas. Contos Mínimos. 2ª ed., Rio de Janeiro: Best Seller, 2006.
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Soluções para a tarefa
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Questão 1 : A resposta é um conto
Questão 2: Resposta: primeira pessoa
Na narração em primeira pessoa , o personagem fica próximo ao leitor , o narrador participa da história , e portanto , narra as suas experiências , suas emoções , seus medos e suas indecisões.
.
victormanuelsilva222:
obg
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