Português, perguntado por nanafmoris, 1 ano atrás

Quando Miguel de Cervantes escreveu Dom Quixote ele queria fazer uma crítica a sociedade da sua época . Que crítica era essa ?
Por favor me ajudem

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Respondido por Kaueoliveira465
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A crítica social
A crítica social de "Dom Quixote" é melhor percebida ao recordar que o autor foi súdito da monarquia absolutista de Felipe II, apoiada pela Contra-reforma tridentina, e redigiu sua novela sob o reinado decadente de Felipe III. Felipe II arruinara a Espanha com a sua megalomania expansionista, investindo na dilatação de um império que abarcava desde as Filipinas ao norte da Europa, a África e o Novo Mundo latino-americano, até mesmo o Brasil, onde os portugueses foram os primeiros a aportar.

As exorbitantes despesas militares, a obsessão por espalhar pelos mares sua Armada Invencível, os gastos com a exploração e a importação de ouro e prata das Américas, foram fatores que mergulharam o país de Cervantes na espiral inflacionária, agravando a crise social. A Mancha, terra de Dom Quixote, é o retrato da decadência do reino, onde o desemprego multiplicava pelos povoados e caminhos pícaros, mendigos, vadios, charlatães, bandidos, enfim, toda uma classe de marginalizados e excluídos cujos farrapos destoavam dos elmos dos oficiais do rei e dos heróis dos romances de cavalaria.

Em 1898 a Espanha perdeu, com a independência de Cuba, suas últimas colônias. Então o "Quixote" passou a ser lido com novos olhos: Cervantes prefigurara ali a ruína da Espanha, desbancada de sua loucura imperialista embora a herança conservadora da Contra-reforma tenha produzido, no século XX, a aterradora figura do generalíssimo Franco.

Tornar-se hoje mais fácil reler o "Quixote" destacando sua aguda crítica social. Em 1605 já não havia castelos na Mancha. Havia casebres, albergues e bodegas, entre os quais trafegariam o cavaleiro da triste figura e Sancho Pança, seu fiel escudeiro, opondo-se a todas as instituições de poder: o Estado, a polícia, a Igreja e as atividades econômicas.

Em 1925 Américo Castro publicou "El pensamiento de Cervantes", comprovando a influência de Erasmo de Rotterdã sobre Cervantes. López de Hoyos, professor do criador do Quixote, era erasmista convicto. Em um trecho do romance é citado o livro de devoção "Luz del alma", de frei Felipe de Meneses, também discípulo de Erasmo. Este erudito sacerdote flamengo dedicou-se a libertar a teologia do formalismo da escolástica decadente. Era um homem de mente aberta, tornara os textos bíblicos acessíveis aos leitores leigos, desmistificou o rigor acadêmico dos textos teológicos, tão misteriosos e herméticos aos olhos do vulgo frente aos dogmas que reforçavam.

Nutrido pelas fontes do pensamento humanista, como Platão, Aristóteles e Horácio, Cervantes relativizou tudo aquilo que o poder, tanto político quanto eclesiástico, absolutizava. Iniciou sua narrativa por nos contar que Alonso Quijano enlouqueceu de tanto ler. E a partir daí construiu o contraponto entre ilusão e verdade, mesclando a realidade e o sonho, o cotidiano e o quimérico, o heróico e o cômico, sem ceder ao ceticismo dos escritores barrocos. "Dom Quixote" não é um romance picaresco, embora esteja repleto de pícaros. É uma sátira inconformista que arranca a máscara do império espanhol, mostrando que não há heróis nem cavaleiros, há sim maus escritores, soldados indisciplinados, inquisidores disfarçados, médicos incompetentes, bandidos, assaltantes, camponeses e pastores.

Otto Maria Carpeaux observou que, influenciado pelo humanismo tolerante e crítico de Erasmo, Cervantes fez uma criação crítica e uma crítica criadora. Seu personagem defende as vítimas das injustiças praticadas pelos poderosos e nos alerta para a facilidade com que os nossos olhos míopes encaram a realidade: vemos gigantes maldosos onde há apenas moinhos de vento; exército de inimigos onde pasta um rebanho de ovelhas; um grande troféu numa simples bacia de barbeiro.

"Amadis de Gaula" e outros romances de cavalaria glorificavam a mentalidade feudal e a empresa colonizadora da Armada espanhola. Cervantes ergueu a sua pena contra todos aqueles que insistiam na loucura de pretender encobrir a verdade histórica com a ficção cosmética. Na folha de rosto da 1ª. ediçao há o desenho de um escudo e, nele, o lema: "Post tenebris, spero lucem"- depois das trevas, espero luz. A luz do antidogmatismo, que derruba as verdades absolutas e as certezas consideradas irremovíveis. A luz que nos permite ver que, de fato, tudo é ambíguo, contraditório, dialético. Até mesmo o próprio Cervantes, que no fim da vida escreveu pasmem! um romance de cavalaria, "Persiles y Segismunda".

Bergamín (e não Chesterton, como muitos pensam), nos preveniu que "louco é aquele que perdeu tudo, menos a razao". E Michel Foucault, em "Les mots e les choses" frisa que Quixote é o louco senhor da razão, mas não com a sua loucura, e sim com o seu protesto. Hoje, o império são os EUA. E onde há apenas pequenas instalações industriais e bases petrolíferas ele enxerga armas de destruição em massa; onde há apenas famílias trabalhadoras, ele vê terroristas; onde há tão-somente homens e mulheres que praticam com devoção sua fé muçulmana, ele aponta fanáticos e fundamentalistas.

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