quais foram as críticas que Bartolomeu Ferreira fez aos Lusiadas?
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Acerca de Frei Bartolomeu Ferreira, que foi o primeiro censor de Os Lusíadas, existe uma lenda, criada pela historiografia literária do final do século XIX: a de que se trataria de um censor benévolo, de grande tolerância, erudição e apurado gosto literário, qualidades que lhe teriam permitido perceber, logo em 1572, o valor do poema. Neste trabalho propõe-se uma reflexão sobre esta “lenda dourada” organizada em torno de três questões fundamentais: 1) quando e como se cola a Frei Bartolomeu Ferreira a imagem do censor benévolo? 2) que factos, ou que documentos permitem confirmar ou refutar essa imagem? 3) em que medida a constituição da lenda de Frei Bartolomeu Ferreira pode alertar-nos para as dificuldades e virtualidades do trabalho historiográfico?
PALAVRAS-CHAVE: Frei Bartolomeu Ferreira, Inquisição, Censura literária, Os Lusíadas
ABSTRACT:
Around Frei Bartolomeu Ferreira a legend was created: he had been a benevolent censor, with an aesthetic feeling for poetry, which allowed him to u
Acerca de Frei Bartolomeu Ferreira, que foi o primeiro censor de Os Lusíadas, existe uma lenda, criada pela historiografia literária do final do século XIX: a de que se trataria de um censor benévolo, de grande tolerância, erudição e apurado gosto literário, qualidades que lhe teriam permitido perceber, logo em 1572, o extraordinário valor do poema épico camoniano. Segundo a mesma lenda, Frei Bartolomeu teria “fechado os olhos” às sugestões eróticas do Canto IX, para poder redigir a aprovação seguinte, interpretada pelos historiadores como uma justificação:
Vi por mandado da Santa e Geral Inquisição estes dez Cantos dos Lusíadas de Luís de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizeram em Ásia e Europa, e não achei neles cousa algũa escandalosa, nem contraria à fé e aos bons costumes; somente me pareceu que era necessário advertir os lectores que o Autor, pêra esclarecer a dificuldade da navegação e entrada dos Portugueses na Índia, usa de ua ficção dos Deuses dos Gentios. E ainda que Sancto Agostinho nas suas Retractações se retracte de ter chamado nos livros que compôs De Ordine às Musas “Deusas”, todavia, como isto é Poesia e fingimento, e o Autor como poeta não pretenda mais que ornar o estilo poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos Deuses na obra, conhecendo-a por tal e ficando sempre salva a verdade de nossa sancta fé que todos os Deuses dos gentios são demónios. E por isso me pareceu o livro digno de se imprimir, e o Autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas. Em fé do qual assinei aqui.
Frei Bertholameu Ferreira[1]
Não nos alongaremos, por agora, na análise desta licença. Parece-nos, contudo, vir a propósito citar aqui a opinião de Artur Anselmo, quando diz que:
Dificilmente um historiador do livro aceita de olhos fechados a lenda de um Frei Bartolomeu Ferreira salvando Os Lusíadas da sanha inquisitorial, do mesmo modo que qualquer professor de natação rejeita a lenda de Camões a salvar o poema épico das ondas do mar após um naufrágio não menos lendário. (ANSELMO, 1997, p. 22).
O que proponho aqui é uma reflexão sobre esta “lenda dourada” que procurarei organizar em torno de três questões fundamentais:
Primeira questão: quando e como se cola a Frei Bartolomeu Ferreira a imagem do censor benévolo?
Segunda questão: que factos, ou que documentos permitem confirmar ou refutar essa imagem?
Terceira questão: em que medida a constituição da lenda de Frei Bartolomeu Ferreira pode alertar-nos para as dificuldades que enfrenta o historiador no momento em que se vê confrontado com factos do passado que são, do seu ponto de vista e do da sua época, chocantes, inadmissíveis, ou incompreensíveis?
Procuremos responder à primeira questão.
Podemos datar o início da constituição da imagem lendária de Frei Bartolomeu de 1890, data em que Francisco Sousa Viterbo publica, nas páginas da revista Circulo Camoniano um estudo intitulado “Apontamentos para o estudo litterario do primeiro censor de Camões”. Nesse trabalho, Sousa Viterbo distinguirá Frei Bartolomeu Ferreira da generalidade dos censores seus contemporâneos, acerca dos quais diz:
[…] todos elles obedeciam mais ou menos, não ao sentimento do bello, mas ao sentimento do fanatismo. Eram casuístas, não eram literatos, e faz pena ver como as mais bellas producções da fantasia estavam sujeitas aos caprichos, tantas vezes ridículos e infantis, da theologia. (VITERBO, 1890, p. 2).
Em contraste com esta caracterização geral, está o modo como Sousa Viterbo descreve Frei Bartolomeu:
Bartholomeu Ferreira era não só um erudito, um enfronhado na litteratura sagrada, mas também um amigo e cultivador das musas. Os poetas confiavam-lhe as suas produções, esperando que elle as revisse e limasse. Os segredos da metrificação não lhe eram, portanto, desconhecidos, e tudo lev