Por que é correto afirmar que a democracia racial é um
mito?
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Resposta:
O que é o “mito da democracia racial”?
Mito é algo irreal, inexistente, uma narrativa fantasiosa. Falar em “mito da democracia racial” leva-nos a interpretar que a democracia racial não existe. De fato, atualmente, sobretudo no Brasil, a democracia racial é uma lenda. Boa parte do senso comum afirma que no Brasil não há racismo, que nele há uma democracia racial pelo fato de não haver uma divisão de raças tão forte quanto há nos Estados Unidos atualmente.
O livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, expõe uma suposta relação cordial entre negros e brancos.
O livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, expõe uma suposta relação cordial entre negros e brancos.
A origem mais forte e sociologicamente descrita do mito da democracia racial aqui no Brasil advém dos escritos do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre. Freyre foi um estudioso da sociologia e da antropologia no Brasil, no século XX. Apesar de situar-se no período pré-científico da sociologia brasileira (quando os sociólogos eram intelectuais e eruditos com formações em outras áreas, como o direito e a filosofia, mas dedicavam-se a estudar sociologia), o pensador pernambucano graduou-se e doutorou-se em ciências sociais nos Estados Unidos, desenvolvendo uma tese sobre a organização social do Brasil colonial.
Em Casa grande e senzala, a obra mais difundida desse autor, ele vai na contramão das teorias do chamado racismo científico do início do século XX, que defendiam a pureza racial e o “branqueamento” do povo brasileiro como ponto de partida para chegar-se a um estágio de maior evolução social. Para o sociólogo brasileiro, era a miscigenação que gerava um povo mais forte e capaz de maior desenvolvimento. O problema da tese de Freyre é que ela considerava como certa a existência de uma relação cordial entre senhores e escravos no período colonial brasileiro.
Segundo o sociólogo, os senhores mantinham uma relação de cordialidade com seus escravos e escravas, mantendo com estas, muitas vezes, relações sexuais. O problema dessa visão é que ela não enxerga que a cordialidade do escravo para com o seu senhor advém do medo e que as relações sexuais entre escravas e senhores brancos eram, na maioria das vezes, estupro ou consentidas por elas por conta do medo que tinham de sofrer castigos ao negarem-se a tal ato. O mesmo fenômeno aconteceu com as índias brasileiras e os brancos.
Esse ciclo de abusos sexuais resultou nos primeiros casos de miscigenação no Brasil ainda no século XVI e intensificou-se até o fim da escravidão. Não podemos dizer que toda a miscigenação do período seja fruto de abuso e de estupros, mas a maior parte foi. Acontece que em outros países, como os Estados Unidos, que também tiveram grande parte da mão de obra da época baseada na escravização de povos africanos, quase não houve miscigenação. Esse fato, arriscamos dizer, não aconteceu por falta de cordialidade entre povos negros e colonos nos Estados Unidos, mas por conta da moral protestante de origem anglicana (a Igreja anglicana era a mais forte entre os colonos ingleses nos séculos XVII e XVIII), que condenava veementemente e de maneira mais severa qualquer ato sexual que não fosse para a procriação dentro do casamento.
De fato, dado o fim da escravidão, pode-se constatar no Brasil a grande miscigenação entre negros de origem africana, brancos de origem europeia e índios nativos das terras brasileiras, o que difere nosso país de todos os outros territórios colonizados no Ocidente. No entanto, o racismo persistiu ainda por muito tempo de maneira descarada, pública e impune e, ainda hoje, persiste nos âmbitos privado e público de maneira velada e estrutural.
Autores como Kabengele Munaga, o saudoso sociólogo brasileiro e professor da USP Florestan Fernandes, o artista e político Abdias do Nascimento, a escritora Conceição Evaristo, entre outros nomes, são os responsáveis por desmistificar a ideia da existência de uma democracia racial no Brasil.
O racismo estrutural e a crença de que não há racismo no Brasil são grandes inimigos na luta por uma sociedade mais justa. Assim como a homofobia e a misoginia, o racismo é um entrave para que se forme uma sociedade brasileira baseada nos pilares democráticos e republicanos da igualdade e da liberdade.