o mito da democracia racial
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Não é necessário nem citar dados para concluir que o racismo está estampado em nossa bandeira: basta ver a situação dos negros a revelar que o racismo é institucional e estruturante da nossa sociedade. A partir disso, não podemos usar uma pontualidade como fato principal. Apesar de gravíssima, a atitude da torcedora do Grêmio, que foi flagrada pelas câmeras de tevê chamando o jogador Aranha, goleiro do Santos, de macaco, que deve ser responsabilizada, nada mais é do que um efeito colateral.
Negros são maioria no país e, em disparada, a maior população carcerária. São vítimas de um genocídio perene e banalizado. Vivem em favelas e periferias em condições subumanas. O acesso ao serviço público é ruim. Diariamente, são agredidos pelo Estado de farda e por uma mídia fascista.
Negros e negras sofrem com ataques racistas há gerações. Já passou do momento de acontecer, no mínimo, uma reparação integral. A estigmatização é uma arma muito poderosa, pois fortalece o preconceito, baixa a auto-estima de um povo e minimiza os efeitos de uma diáspora.
O racismo é uma prática institucional exposta nesta pátria amada. A primeira cena que presenciei foi ainda muito cedo, acredito que tinha por volta de 12 anos. Eu, meu irmão e um amigo. Saímos de casa com trajes para uma partida de futebol na quadra de uma escola. Para chegar até lá, tínhamos de ir até a outra ponta da favela. No meio do caminho, nos deparamos com quatro policias que apontavam suas armas em direção a cada beco e viela.
Quando eles nos viram, falaram baixinho para pararmos. Assutados, congelamos. Um policial pediu para meu irmão e eu, que temos o tom de pele mais claro, sairmos e seguraram nosso amigo, que foi agredido física e verbalmente.
Esse tipo de prática seletiva acontece todos os dias dentro das favelas, e o País segue na farsa do “ninguém sabe, ninguém viu”. Mesmo com casos explícitos que tomam o cenário nacional, como Cláudia Ferreira, mulher negra, pobre e moradora do subúrbio do Rio, que depois de baleada, foi arrastada por uma viatura da Policia Militar, num ano de Copa do Mundo, momento em que o País é vitrine e as forças amardas mandam um recado para a população negra e pobre. Cena que remete à captura de um escravo por capitães do mato.
Enquanto os efeitos colaterais do racismos institucional aumentam, práticas que transgridem leis e violam direitos humanos parecem não causar indignação e colocam em questão a atuação da justiça quando se trata de negro e pobre. Racistas não prendem racistas a não ser para salvar o próprio racismo.
Carlos Hasenbalg afirma que desde o final do Segundo Império e início da República já se acreditava que o Brasil teria escapado do problema do preconceito racial. Explica que tal concepção tem origem na comparação feita com a situação racial observada nos Estados Unidos da América daquela época.
Acrescenta, Hasenbalg, que conclusões semelhantes eram tomadas pelas elites de outros países da América Latina, quando comparavam suas realidades com a estadunidense.
Entretanto, explica Hasenbalg, diferentemente dos padrões raciais encontrados nos Estados Unidos, no Brasil e em outros países latino-americanos, estas parecem possuir dois pontos centrais:
O primeiro deles é o embranquecimento, ou ideal do branqueamento, entendido como um projeto nacional implementado por meio da miscigenação seletiva e políticas de povoamento e imigração europeia.
O segundo é a concepção desenvolvida por elites políticas e intelectuais a respeito de seus próprios países, supostamente caracterizados pela harmonia e tolerância racial e a ausência de preconceito e discriminação racial.
Thomas Skidmore entende que a tese do branqueamento baseia-se na presunção da superioridade branca. Afirma que essa corrente vê na miscigenação a saída para tornar a população mais clara, por acreditar que o gene da raça branca prevaleceria sobre as demais e que as pessoas em geral procurariam por parceiros mais claros do que elas. Assim afirmavam que o branqueamento produziria uma população mestiça sadia, capaz de tornar-se sempre mais branca, tanto cultural como fisicamente.
Por esse motivo, segundo Florestan Fernandes, o ideal da miscigenação era tido como um mecanismo mais ou menos eficaz de absorção do mestiço. O essencial, no funcionamento desses mecanismos, não era nem a ascensão social de certa porção de negros e de mulatos, nem a igualdade racial, mas, ao contrário, a hegemonia da raça dominante.
Refletindo o ideal citado, João Batista de Lacerda, diretor do Museu Nacional, e único latino-americano a apresentar um relatório no I Congresso Universal de Raças, em Londres, no ano de 1911, chegou a afirmar que: no Brasil já se viram filhos de mestiços apresentarem, na terceira geração, todos os caracteres físicos da raça branca[...]. Alguns retêm uns poucos traços da sua ascendência negra por influência dos atavismos(...) mas a influência da seleção sexual (...) tende a neutralizar a do atavismo, e remover dos descendentes dos mestiços todos os traços da raça negra(...) Em virtude desse processo de redução étnica, é lógico esperar que no curso de mais um século os mestiços tenham desaparecido do Brasil. Isso coincidirá com a extinção paralela da raça negra em nosso meio.
O ideal da miscigenação adquire nova roupagem, segundo Martiniano J. Silva, com a obra "Casa Grande e Senzala", escrita pelo historiador e sociólogo Gilberto Freyre, passando a ser vista como mecanismo de um processo, o qual tem, como fim, a democracia racial.
Segundo Clóvis Moura, Gilberto Freyre caracterizou a escravidão no Brasil como composta de senhores maleáveis e escravos conformados. O mito do "bom senhor" de Freyre é uma tentativa no sentido de interpretar as contradições do escravismo como episódio natural, algo extremamente condenável, porém que resultou na construção de uma identidade racial notável.
Explica Martiniano J. Silva que a miscigenação é um velhíssimo processo de enriquecimento racial e cultural dos povos, capaz de gerar civilizações, e que ocorre de forma livre e democrática. Afirma que historicamente a miscigenação de raças no Brasil "nunca foi tratada e nunca existiu como um processo livre, espontâneo, e, portanto, natural, de união entre dois povos." Ao contrário, como reafirma Silva, a dignidade da mulher negra foi violentada, atingindo sua honra no âmbito moral e sexual, através de uniões mantidas à força, sob a égide do medo, da insegurança, onde as crianças eram concebidas legalmente sem pai, permanecendo no status de escrava, não havendo, assim, nenhum enriquecimento racial e cultural de civilização alguma. Conclui dizendo que é preciso que não se confunda a descaracterização de um povo pela violência sexual com a hipótese de uma democracia racial.
Acreditando na tese da democracia racial no Brasil, relata Sylvio Fleming Batalha da Silveira que os cientistas sociais estado-unidenses Donald Pierson e Marvin Harris, realizaram em 1945 e 1967, respectivamente, estudos sobre as relações sociais no Brasil. Apesar de inicialmente, segundo Silveira, terem constatado a grande disparidade existente entre negros e brancos no que se refere à localização na estratificação social, continuaram, entretanto, sustentando a tese da democracia racial.