O menino no espelho
Levantava a perna, e ele levantava também, ao mesmo tempo. Abria os braços e ele fazia o mesmo. Coçava a orelha, e ele também.
[...] Quando volto a olhá-lo no rosto, vejo assombrado que ele continua a sorrir. Como se agora estou absolutamente sério?
[...] Um calafrio me corre pela espinha, arrepiando a pele: há alguém vivo dentro do espelho! Um outro eu, o meu duplo, realmente existe! Não é imaginação, pois ele ainda está sorrindo, e sinto o contato de sua mão na minha, seus dedos aos poucos entrelaçarem os meus.
Puxo a mão com cuidado, descolando-a do espelho. Em vez da outra mão se afastar, ela vem para fora, presa à minha. Afasto-me um passo, sempre a puxar a figura do espelho, até que ela se destaque de todo, já dentro do meu quarto, e fique à minha frente, palpável, de carne e osso, como outro menino exatamente igual a mim.
– Você também se chama Fernando? – pergunto, mal conseguindo acreditar nos meus olhos.
– Odnanref – responde ele, e era como se eu próprio tivesse falado: sua voz era igual à minha.
– Odnanref?
Sim, Odnanref. Fernando de trás para diante. Era em tudo semelhante a mim, menos em relação à direita e à esquerda, que nele eram o contrário, sendo natural, pois, que seu nome, isto é, o meu fosse ao contrário também. Por uma coincidência, Odnanref era o meu nome de guerra, na sociedade secreta Olho de Gato.
– Por isso mesmo – confirmou Odnanref, dando-me um tapinha nas costas e rindo, feliz:
- Foi você que me desencantou, adotando o meu nome. Senão eu jamais teria vindo, pois a lei do mundo dos espelhos proíbe terminantemente que a gente venha ao mundo de vocês. A menos que alguém consiga desvendar o nosso encanto. O meu era esse, e você adivinhou. Eu só estava esperando que você me puxasse, como acabou de fazer.
Deslumbrado com a perspectiva de ter alguém igual a mim, como um perfeito irmão gêmeo, eu não imaginava as dificuldades que iria enfrentar. A falta de minha imagem no espelho, por exemplo, era uma delas: me criava problemas para pentear os cabelos ou escovar os dentes sem poder me ver.
Combinamos que, a partir de então, ele me substituiria quando eu quisesse, mas jamais deveríamos ser vistos juntos. Ninguém poderia desconfiar de nossa existência dupla, pois com isso se acabaria o encanto, significando o seu imediato regresso, para todo o sempre, ao interior do espelho.
Em compensação, ele me revelou uma surpresa a mais, como se fosse pouco o milagre de sermos dois: sempre que eu quisesse, poderia ver, ouvir, pensar e sentir tudo o que ele via, ouvia, pensava e sentia. Se ele comesse um doce, por exemplo, eu podia sentir o gosto; se achasse graça em alguma coisa, eu podia rir, mesmo que estivesse a quilômetros de distância. O importante é que só se dava quando eu quisesse: das coisas ruins ou simplesmente sem graça eu me dispensaria de tomar conhecimento.
O que significava que ele poderia tomar remédio em meu lugar. E assistir às aulas mais cacetes (para mim eram quase todas), sem que eu deixasse de aprender o que nelas se ensinasse. Poderia até mesmo fazer provas para mim, enquanto eu ia empinar papagaio, pegar passarinho, jogar pião ou bola de gude.
E assim foi, durante algum tempo. Nunca me diverti tanto. Só que eu tinha de tomar muito cuidado para não trair o meu segredo.
(Fernando Sabino, trecho do livro O menino no espelho. 91e Ed. - Rio de Janeiro: Record, 2012, pp. 114-
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