Nunca é tarde, sempre é tarde
Conseguiu aprontar-se mas não teve tempo de guardar o material de maquiagem espalhado sobre a penteadeira. Olhou-se no espelho. Nem bonita, nem feia. Secretária. Sou uma secretária, pensou, procurando conscientizar-se. Não devo ser, no trabalho, nem bonita, nem feia. Devo me pintar, vestir-me bem, mas sem exagero. Beleza mesmo é pra fim de semana. Nem bonita, nem feia, disse consigo mesma. Concluiu que não havia tempo nem para o café. Cruzou a sala e o hall em disparada, na direção da porta de saída, ao mesmo tempo em que gritava para a mãe envolvida pelos vapores da cozinha, eu como alguma coisa por lá. Sempre tem alguém com alguma coisa pra mastigar. Café nunca falta. A mãe reclamou mais uma vez. Você acaba doente, Su. Assim não pode. Assim, não, Su. Enlouquecida pela pressa, ela nada ouviu. Poucas vezes ouvia o que a mãe lhe dizia. Louca de pressa, ia sair, avançou a mão para a maçaneta da porta, e assustou-se. A campainha tocou naquele exato momento. Quem haveria de ser àquela hora? A campainha era insistente. Algum dedo nervoso apertava-a sem tréguas. A campainha. Su acordou finalmente com o tilintar vibrante do despertador Westclox e deu-se conta de que sequer havia- -se levantado. Raios. Tudo por fazer. Mesmo que acordasse em tempo, tinha sempre que correr, correr. Tinha tudo cronometrado, desde o levantar-se até o retoque do batom e o perfumezinho final. Exploit, da Atkinsons. Perfume quente. Esqueceu onde havia deixado o relógio de pulso. Perambulou nervosamente pela casa procurando-o. Atrasou-se alguns preciosos minutos. A mãe achou-o sobre a mesinha do telefone. Su colocou-o no pulso. Viu as horas. Havia conseguido aprontar-se, mas não teve tempo de guardar o material de maquiagem espalhado sobre a penteadeira. Olhou-se no espelho. Nem bonita, nem feia. Não havia tempo nem para o café. Cruzou em disparada a sala e o hall, em direção à porta de saída, ao mesmo tempo em que gritava para a mãe, sempre tem algo pra mastigar. Avançou a mão para a fechadura e assustou-se com o toque insistente da campainha. Algum dedo nervoso. O Westclox. Su acordou e deu- -se conta mais uma vez da trágica e permanente verdade de que ainda não estava pronta. Levantou-se de um ímpeto. Correu ao banheiro, voltou do banheiro, vestiu-se com a roupa estrategicamente deixada sobre a cadeira na noite anterior. Ao sentar-se mais uma vez frente ao espelho, notou que, embora não se tivesse pintado ainda, o material de maquiagem já estava espalhado sobre a penteadeira. O batom aberto, o Exploit desastradamente destampado, evaporando. O despertador tocou novamente. Ou tocou finalmente. E estava com toda corda, pois demorou a silenciar. Mesmo assim, Su andou pela casa toda, tentando desesperadamente acordar-se. Ocorreu-lhe afinal a ideia de pedir ajuda à mãe. Esta, envolvida pelos vapores da cozinha, mostrou-se compreensiva. Está bem, Su. Espere só um instantinho que eu vou lá no quarto te acordar.
FIORANI, Sílvio. Os estandartes de Átila. São Paulo: Lazuli/Companhia Editora Nacional, 2011. p. 43.
Explique o título do conto.
a) Por que “nunca é tarde”?
b) Por que “sempre é tarde”?
c) Resuma, em poucas linhas, o assunto do conto de Sílvio Fiorani.
d) Su está aprisionada em seu próprio sonho. Explique essa afirmação, considerando as respostas que deu às questões anteriores e, sobretudo, o final do conto.
Soluções para a tarefa
Resposta:
01 – O conto é uma narrativa realista? Por quê?
Sim, pois o autor usa fatos reais para ir contando a história, todas as ações são reais.
02 – A personagem se assustou devido:
a) À percepção de que sequer havia levantado.
b) À possibilidade de ficar doente.
c) À reclamação da mãe.
d) Ao atraso para o trabalho.
e) Ao toque da campainha.
03 – Observe o trecho do conto:
“Cruzou a sala e o hall em disparada, na direção da porta de saída, ao mesmo tempo em que gritava para a mãe envolvida em vapores da cozinha, eu como alguma cousa lá mesmo. Sempre tem alguém com alguma bolachinha disponível. Café nunca falta. A mãe reclamou mais uma vez. Você acaba doente, Su. Assim não pode. Assim não. Su, enlouquecida pela pressa, nada ouviu.”
a) Pensando na norma gramatical, o que há de estranho no trecho?
Não foram usados os sinais de pontuação que, na modalidade escrita da língua indicam a fala de alguém.
b) Que efeito de sentido você acha que o autor procurou obter?
Resposta pessoal do aluno. Mas a esperada é: ele certamente procurou sugerir a rapidez com que os fatos se sucederam, e a ausência dos sinais de pontuação contribuem para a fluência da narrativa.