Não houve ruptura alguma entre o novo mundo que era a escolinha de Eunice e o mundo
das minhas primeiras experiências - o de minha velha casa do Recife, onde nasci, com suas
salas, seu terraço, seu quintal cheio de árvores frondosas. A minha alegria de viver, que me
marca até hoje, se transferia de casa para a escola, ainda que cada uma tivesse suas
caracteristicas especiais. Isso porque a escola de Eunice não me amedrontava, não tolhia minha
Curiosidade.
Quando Eunice me ensinou era uma meninota, uma jovenzinha de seus 16, 17 anos. Sem
que eu ainda percebesse, ela me fez o primeiro chamamento com relação a uma indiscutível
amorosidade que eu tenho hoje, e desde há muito tempo, pelos problemas da linguagem e
particularmente os da linguagem brasileira, a chamada lingua portuguesa no Brasil. Ela com
certeza não me disse, mas é como se tivesse dito a mim, ainda criança pequena: "Paulo, repara
bem como é bonita a maneira que a gente tem de falar!..." E como se ela me tivesse chamado.
Eu me entregava com prazer à tarefa de "formar sentenças". Era assim que ela costumava dizer
Eunice me pedia que colocasse numa folha de papel tantas palavras quantas eu conhecesse. Eu
ia dando forma às sentenças com essas palavras que eu escolhia e escrevia. Então, Eunice
debatia comigo o sentido, a significação de cada uma.
Fui criando naturalmente uma intimidade e um gosto com as ocorrências da lingua os
verbos, seus modos, seus tempo... A professorinha só intervinha quando eu me via em
dificuldade, mas nunca teve a preocupação de me fazer decorar regras gramaticais.
Mais tarde ficamos amigos. Mantive um contato próximo com ela, sua família, sua irmāá
Débora, até o golpe de 1964. Eu fui para o exilio e, de lá, me correspondia com Eunice. Tenho
impressão de que durante dois anos ou três mandei cartas para ela. Eunice ficava muito contente.
Não se casou. Talvez isso tenha alguma relação com a abnegação, a amorosidade que a gente
tem pela docência. E talvez ela tenha agido um pouco como eu: ao fazer a docência o meio da
minha vida, eu termino transformando a docência no fim da minha vida.
Eunice foi professora do Estado, se aposentou, levou uma vida bem normal. Depois
morreu, em 1977, eu ainda no exílio. Hoje, a presença dela são saudades, são lembranças vivas.
Me faz até lembrar daquela música antiga, do Ataulfo Alves: "Ai, que saudade da professorinha,
que me ensinou o bê-á-bá".
(Paulo Freire, publicado pela revista Nova Escola, em dezembro de 1994.)
1) Depois de ler a experiência pessoal de Paulo Freire, contada por ele no texto acima, escreva
um pequeno parágrafo explicando o que você identificou como tema do relato.
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