Minha mãe queria que eu fosse médico. Coitada. Meu pai até ria. Meu filho médico, ele
dizia, e gargalhava. Se conseguir ser pedreiro ou encanador, está bom. Ela fechava a cara e
continuava dizendo que eu iria ser médico, que eu estudaria para isso, faculdade e essas
coisas, que eu era inteligente, olha a cara do menino, Oswaldo, ele tem cara de doutor.
Meu pai era mestre de obras, pedreiro e encanador. Passava, no entanto, a maior parte
do tempo desempregado, no bar, [...] jogando dominó. Minha mãe trabalhava de diarista, me
levava para a escola todo dia de manhã, no caminho para as casas da dona Laura ou da
dona Joana, e falava que estava guardando dinheiro para meus estudos, ―se precisar‖.
Apontava para a bolsa como se me mostrasse um cofre, e dizia, sorrindo: ―Se precisar‖.
O primeiro brinquedo que eu ganhei de Natal foi um jogo de consultório médico. O
primeiro e o último. Depois disso a nossa situação ficou mais difícil. Meu pai nem procurava
mais emprego. Entrava em casa, me via brincando com o jogo que minha mãe escolhera, e
dizia: ―E aí, doutor, dá para escutar o meu coração?‖. Eu passava as tardes brincando de
médico. Colocava o termômetro no gato que vivia no terreno baldio colado à minha casa, ele
miava louco de raiva, mas eu não me importava. Com o jaleco branco, óculos de plástico, eu
precisava praticar.
Nas primeiras vezes que meu pai pediu para que o auscultasse, até achei que ele
falava sério. De roupa branca, entrava em seu quarto, ele esparramado na cama, e apoiava o
estetoscópio de brinquedo em suas costas ou peito para ouvir seu coração. Mas aí ele ria,
uma risada estridente, ou adormecia, roncando alto, e eu desisti.
Eu auscultava tudo. [...]
Uma vez eu até subi na escada para encostar o estetoscópio no forro e auscultar o barulho
dos aviões. Meu pai chegou em casa bem naquela hora. Ao me ver na escada, riu um bom
tempo. Parecia que não iria parar de rir nunca mais.
As coisas não aconteceram como a minha mãe queria. Meu pai, de tanto beber, durou
pouco. E a dona Laura se mudou para Minas. Queria levar a minha mãe com ela, mas ela não
foi. Acho que ficou por minha causa, apesar de eu já estar grandinho, cursando o ginásio —
segundo os cálculos dela, a caminho de virar um Doutor. A dona Joana se separou do marido.
[...] Ela se mudou para longe, para um apartamento menor, e cortou relações com todos. Até
com a diarista, de vergonha, talvez.
Sem dona Laura e dona Joana, minha mãe saiu procurando casas novas onde trabalhar, mas
não era fácil se entrosar com as patroas. Elas eram muito jovens e arrogantes, queriam
ensiná-la a lustrar os móveis, a encerar o assoalho, a passar as camisas dos patrões. Ela
chegava nervosa, no fim do dia, sentava na cama contrariada, olhava a bolsa vazia, a mesma
na qual batia a mão quando eu era pequeno, orgulhosa do dinheiro que economizava para os
meus estudos, ―se precisar‖.
Não tardou e eu tive de ajudar em casa, e quando vi estava usando as roupas do meu
pai — calça manchada de tinta, camiseta regata e boné —, trabalhando com meu tio, de
assistente de pedreiro e encanador. Fui gostando do trabalho, principalmente de consertar
canos quebrados. Gostava de entender o fluxo das águas das casas, de ver o que ninguém
via, o que estava debaixo do piso, no meio das paredes, nas entranhas dos apartamentos, por
onde entra a ágHoje minha mãe não trabalha mais. Prepara o café bem cedo para mim, me acompanha
à porta, com orgulho do meu uniforme azul-marinho, das botas e das luvas de borracha. ―Um
especialista‖, ela diz.―Meu Doutor.‖ Na verdade eu não sou exatamente isso que ela pensa,
iludida pelo cansaço dos anos e talvez pelo meu uniforme limpo das manhãs. É verdade que
tenho uma especialidade. Sou um auscultador de canos. Trabalho em uma desentupidora, sou
chamado para resolver casos especiais.
Não uso um estetoscópio como gostaria minha mãe, mas encosto o ouvido em um
ferro comprido, de pontas fechadas, para detectar o rumo das águas, encontrar caixas de
esgoto escondidas debaixo dos pisos, entupidas após anos de uso, ou, em muitos casos, por
pelos de cachorros ou gatos de estimação.
Meus colegas me apelidaram de Doutor, acho que algum deles ouviu minha mãe se
despedindo de mim uma manhã. No começo eu não gostei, agora não dou importância. Gosto
do que faço do silêncio em minha volta quando dão a descarga e eu começo a auscultar. No
entanto, depois que as águas passam, tenho sempre a impressão de ouvir um coração
pulsando. E uma risada incômoda saindo dos canos.
SCHWARCZ, Luiz. In: Vários autores. Boa companhia: contos.
São Paulo: Companhia das Letras. p. 25-28. (Fragmento
A mãe do narrador desejava que ele se tornasse médico.
a) Que característica do menino fazia com que ela acreditasse que ele poderia se tornar médico?
______________________________________________________________________________
b) Em sua opinião, por que a mãe esperava que o filho seguisse essa profissão?
___
Soluções para a tarefa
Respondido por
18
Resposta:
A) Sua mãe notou que ele era inteligente por isso dizia que ele se tornaria doutor
B) Para suprir suas expectativas ou até mesmo não seguir o mesmo rumo do pai ou do tio
Espero ter te ajudado
PedroIgor7682456u:
coloca como melhor resposta por favor
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