Meu problema com o panetone
Vou cometer uma blasfêmia: nunca gostei de panetone.
Meu paladar é infantil e não combina muito com damasco, mamão, laranja, limão, maçã, cidra e a maldita, polêmica e cancelada uva passa. Não que que não coma frutas, mas frutas secas são um refinamento adulto que não me cabe, não me deixa com gula.
Nem considero recheio, não há como levar em conta que é uma surpresa deliciosa dentro do pão doce. Vejo como um pedágio, uma obrigação.
Entra na categoria de tira-gosto: tira o gosto de tudo.
Quem inventou o panetone estava se sentindo culpado pela dieta, e forrou o glúten com uma salada de frutas.
Entendo que é uma tradição europeia, de enfrentar o inverno, com o congelamento do alimento, que perde a textura e o sabor em nome da conservação. Mas só serve para quem come antropologia, não para mim.
Jamais ofereci o panetone clássico para os meus amigos, talvez seja o presente ideal para o inimigo secreto.
Em casa, ele ficava como sobremesa em cima da mesa, e restava como objeto decorativo nos próximos meses. Assumia a função imóvel de caso, de decoração natalina. Ele não envelhece, pois não tem vida. Tanto que demorei para descobri-lo comestível. Vi meu tio beliscando nacos e me espantei. Pode mastigar? Jurava que era da família cenográfica dos enfeites.
Tornou-se um dos grandes símbolos da solidão no meu imaginário infantil: triste como um panetone, isolado como um panetone, quieto como um panetone.
Até que na minha maturidade surgiu o chocottone, que transgrediu o ideário de discrição e simplicidade. Foi como unir a Páscoa com o Natal. Minha criança ressuscitou.
Saímos da essencialidade espiritual para a completa extravagância.
Virei viciado em seus flocos de chocolate, em sua calda inesperadamente derretida em seu interior. Já lembrava um fondue. Como que conseguiram criar um braseiro natural?
Tenho agora dificuldade de dar de presente porque sempre penso que é capaz de me faltar. Despertou o egoísmo em sua versão mais abrupta e selvagem. Odeio repartir mesmo tendo consciência de que é exagerado para uma única pessoa.
Atingiu, inclusive, a minha generosidade paterna, a mania de ceder o melhor aos filhos. Tornei-me um homem avarento numa época do ano destinada a grandes ações solidárias. Comecei a frequentar o supermercado sozinho para esconder o produto da esposa e estocá-lo em esconderijo entre as minhas roupas. Meu cartão de crédito extrapolou o seu limite. Acordo de madrugada para engordar alguns quilos em segredo.
Não é minha culpa. Sou fraco perto do chocottone. Não resisto. Ele hipnotiza o sujeito com seu jeito de ovo disfarçado, de caixa de bombom aos pedaços. Enfeitiça o consumidor com a sua glicose subcutânea, com o licor do riso fácil.
Repare o quanto ele é moldado para o individualismo, resistente ao trato comunitário. Não permite fatias simétricas, não é macio como uma torta, os pedaços vão para o prato nem um pouco triangulares. O risco é arrancar metade dele de uma vez e devorá-lo sem perceber.
Minha família mineira e gaúcha encontra-se seriamente ameaçada.
(Fabrício Carpinejar)
01) Justifique o título dado à crônica em questão:
02) Qual a temática do texto? Justifique sua resposta:
03) O que é blasfêmia? Qual seria a do autor? Você compartilha de sua opinião?
04) Você concorda com os adjetivos dados por ele à uva passa? Quais são eles?
05) O que seria ter um "paladar infantil"? Explique com suas palavras:
06) De que trocadilho o autor se vale? Com que finalidade?
07) Copie do texto uma passagem carregada de humor:
08) Por que o autor achava que o panetone não era comestível?
09) Que comparações o autor faz com relação ao panetone? O que todas elas têm em comum?
10) Quando a criança que habita o autor ressuscitou? Por quê?
11) Explique a frase final do texto:
12) Que mensagem o texto transmite? Comente:
Soluções para a tarefa
01) Justifique o título dado à crônica em questão:
O título da crônica, "Meu problema com o panetone", resume o sentimento de aversão do autor em relação ao panetone.
02) Qual a temática do texto? Justifique sua resposta:
A temática é a opinião do autor acerca de alguns produtos específicos (panetone e chocotone). A justificativa é o próprio texto. Lendo, vemos que o autor conta o que ele gosta e o que não gosta.
03) O que é blasfêmia? Qual seria a do autor? Você compartilha de sua opinião?
Blasfêmia é o insulto a alguma entidade respeitável, seja ela um objeto, um produto, um ser, um lugar, etc. A do autor seria a aversão ao panetone, um produto bastante aclamado. Não.
04) Você concorda com os adjetivos dados por ele à uva passa? Quais são eles?
Não. Os adjetivos empregados pelo autor para caracterizar a uva passa são "maldita", "polêmica" e "cancelada".
05) O que seria ter um "paladar infantil"? Explique com suas palavras:
A meu ver, "paladar infantil" é a negação à alimentação saudável, onde supostamente predomina a preferência a alimentos menos saudáveis.
06) De que trocadilho o autor se vale? Com que finalidade?
Do trocadilho "Entra na categoria de tira-gosto: tira o gosto de tudo." Com a finalidade de reforçar sua aversão ao recheio do panetone.
07) Copie do texto uma passagem carregada de humor:
Uma passagem de humor é "Jamais ofereci o panetone clássico para os meus amigos, talvez seja o presente ideal para o inimigo secreto."
08) Por que o autor achava que o panetone não era comestível?
Porque o autor só via aquilo como um objeto decorativo, como dita ele mesmo em uma parte do texto, ressaltando que "Jurava que era da família cenográfica dos enfeites."
09) Que comparações o autor faz com relação ao panetone? O que todas elas têm em comum?
As comparações são de "antropologia", "objeto decorativo" e "um dos grandes símbolos da solidão". Elas têm em comum o fato de denegrir a imagem do panetone, como alimento.
10) Quando a criança que habita o autor ressuscitou? Por quê?
Em sua maturidade. Porque, segundo ele mesmo, foi nesse período que o chocotone surgiu e "transgrediu o ideário de discrição e simplicidade".
11) Explique a frase final do texto:
O autor quis dizer, na frase final, que sua obsessão pelo produto (chocotone) encontra-se tão intensa que pode até ameaçar sua família.
12) Que mensagem o texto transmite? Comente:
À primeira vista, a crônica parece ser apenas uma opinião pessoal do autor, mas há uma mensagem implícita dizendo que "pequenas mudanças podem gerar grandes resultados".
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