Leia as crônicas de Luis Fernando Veríssimo:
Entrega em domicílio
Não sei quando será, mas não deve demorar. O lugar? Qualquer grande cidade brasileira.
Noite. É cedo, mas não se veem carros nas ruas nem gente nas calçadas. Só o que se vê são
motociclistas. Suas motocicletas têm caixas atrás, para carregar os pedidos.
São entregadores. Motoboys. Teleboys. Eles se cruzam nas ruas vazias, em disparada.
Como os carros não saem mais à noite, e os motociclistas não os respeitam mesmo, os faróis
semafóricos não funcionam. O amarelo fica piscando a noite inteira, e nos cruzamentos a
preferência é dos entregadores mais corajosos. Há várias batidas e pelo menos um morto por
noite. Mas o número de motociclistas nas ruas não para de crescer.
A população não sai mais de casa. Tudo é pedido pelo telefone. Os restaurantes
despediram seus garçons e trocaram por motoboys. Telegarçons. Se você quiser um jantar fino à
luz de velas, com vários pratos, sobremesa e vinho, existem serviços de entrega para tudo. Um
entrega os pratos finos. Outro a sobremesa. Outro os vinhos. Outro a toalha de linho, os talheres
e as flores. E já há um de televelas.
Como as pessoas não saem à noite e ninguém mais vai jantar na casa de ninguém, há
uma cooperativa que se prontifica a mandar os próprios teleboys como convidados a jantares
finos. A Telenós. Você especifica o tipo de conversa que quer à mesa — mais ou menos
intelectual, divertida, safada, política, variada etc. — e na hora marcada chegam os
telecomensais, no número e com o traje que você quiser. Eles comem, conversam, elogiam os
anfitriões e vão embora ou, por um adicional, limpam a cozinha.
Como a sociedade passou a depender deles para tudo, é natural que comece a haver
distorções criminosas no mundo da entrega em domicílio e teleboys se aproveitem do seu poder
para aterrorizar a população. Você abre a porta para o entregador de pizza com a mozarela
pequena que pediu e de repente se vê acossado por um bando de dez, cada um com uma caixa
de supercalabresa que você é obrigado a pagar, e ainda dar gorjeta. Não adianta você telefonar
para a polícia. A polícia também não sai mais na rua. Existe um serviço de telessocorro que
fornece ajuda parapolicial, mas eles não agem contra teleboys. O corporativismo da classe é
forte.
Os motoboys dominam a noite e desenvolveram uma cultura própria. Têm seu folclore,
seus mitos, seus heróis. Como “Fast Boy” Menezes, que entrega sorvete na mão em qualquer
ponto da cidade e você não paga pela parte que derreter. Ou Jorge “Armário” Freitas, que
adaptou sua moto para carregar qualquer coisa, bateu seu próprio recorde entregando um piano
de cauda numa recepção improvisada — com o banquinho e o pianista — e morreu numa freada
brusca, esmagado pela jacuzzi portátil que levava para uma festa gay. Não sei quando será, mas
não deve demorar.
A primeira terça-feira
Dois do um de dois mil e um. As datas deveriam nos fixar no tempo como as coordenadas
geográficas nos fixam no espaço, mas a analogia não funciona. Estar no segundo dia do primeiro
mês do terceiro milênio não nos dá a mesma certeza de estarmos em algum lugar como dariam
graus de latitude e longitude medidos de pontos fixos. O tempo não tem pontos fixos, o tempo é
uma sombra que dá a volta na Terra, ou a Terra é que dá voltas numa sombra, e nossa única
certeza é que será sempre a mesma sombra – o que não é uma certeza, é um terror.
Dois do um de dois mil e um. Terça-feira. A primeira terça-feira do milênio. Na nossa fome
de coordenadas no tempo nos convencemos até de que dias da semana têm características. De
que a terça-feira, por exemplo, não serve para nada. De que terça é o dia mais sem graça que
existe, sem a gravidade da segunda – dia de remorso e decisões – e o peso da quarta, que
centraliza a semana (pelo menos em Brasília), ou a concentração da quinta, ou a frivolidade da
sexta. Queremos que passar pelos dias seja como passar por meridianos e paralelos, a evidência
de que estamos indo numa direção, e não entrando e saindo da mesma sombra. Não passando
por cada terça-feira com a nítida impressão de que já estivemos aqui.
Já que não há coordenadas e pontos fixos no tempo, contentemo-nos com metáforas
fáceis: o significado de estar em dois do um de dois mil e um é que um novo milênio se estende
como um imenso pergaminho à nossa frente, esperando para ser preenchido. Podemos escolher
nosso destino, desenhar nossos próprios meridianos e paralelos e prováveis novos mundos. É
verdade que a passagem do tempo não se mede pela degradação orgânica, e que a cada terça-
feira estaremos mais perto da sombra que nunca passa, suspiro e reticências. Nenhum de nós
chegará muito longe no novo milênio. Mas é bom saber que ele está aí, inteirão, à nossa espera.
(Verissimo, Luis Fernando Ironias do tempo. Rio de Janeiro : Objetiva, 2018.)
(vou colocar as perguntas em outra, pq não tem espaço)
Soluções para a tarefa
Respondido por
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Resposta:
para bens vc escreve muito bom em
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