“— Hoje — disse Milkau quando chegaram a um trecho desembaraçado da praia —, devemos escolher o local para a nossa casa. — Oh! não haverá dificuldade, neste deserto, de talhar o nosso pequeno lote... — desdenhou Lentz. — Quanto a mim, replicou Milkau, uma ligeira inquietação de vago terror se mistura ao prazer extraordinário de recomeçar a vida pela fundação do domicílio, e pelas minhas próprias mãos... O que é lamentável nesta solenidade primitiva é a intervenção inútil do Estado... — O Estado, que no nosso caso é o agrimensor Felicíssimo... — Não seria muito mais perfeito que a terra e as suas coisas fossem propriedade de todos, sem venda, sem posse? — O que eu vejo é o contrário disto. É antes a venalidade de tudo, a ambição, que chama a ambição e espraia o instinto da posse. O que está hoje fora do domínio amanhã será a presa do homem. Não acreditas que o próprio ar que escapa à nossa posse será vendido, mais tarde, nas cidades suspensas, como é hoje a terra? Não será uma nova forma da expansão da conquista e da propriedade? — Ou melhor, não vês a propriedade tornar-se cada dia mais coletiva, numa grande ânsia de aquisição popular, que se vai alastrando e que um dia, depois de se apossar dos jardins, dos palácios, dos museus, das estradas, se estenderá a tudo?... O sentimento da posse morrerá com a desnecessidade, com a supressão da ideia da defesa pessoal, que nele tinha o seu repouso... — Pois eu — ponderou Lentz —, se me fixar na ideia de converter-me em colono, desejarei ir alargando o meu terreno, chamar a mim outros trabalhadores e fundar um novo núcleo, que signifique fortuna e domínio... Porque só pela riqueza ou pela força nos emanciparemos da servidão. — O meu quinhão de terra — explicou Milkau — será o mesmo que hoje receber; não o ampliarei, não me abandonarei à ambição, ficarei sempre alegremente reduzido à situação de um homem humilde entre gente simples. Desde que chegamos, sinto um perfeito encantamento: não é só a natureza que me seduz aqui, que me festeja, é também a suave contemplação do homem. Todos mostram a sua doçura íntima estampada na calma das linhas do rosto; há como um longínquo afastamento da cólera e do ódio. Há em todos uma resignação amorosa... Os naturais da terra são expansivos e alvissareiros da felicidade de que nos parecem os portadores... Os que vieram de longe esqueceram as suas amarguras, estão tranquilos e amáveis; não há grandes separações, o próprio chefe troca no lar o seu prestígio pela espontaneidade niveladora, que é o feliz gênio da sua raça. Vendo-os, eu adivinho o que é todo este País — um recanto de bondade, de olvido e de paz. Há de haver uma grande união entre todos, não haverá conflitos de orgulho e ambição, a justiça será perfeita; não se imolarão vítimas aos rancores abandonados na estrada do exílio. Todos se purificarão e nós também nos devemos esquecer de nós mesmos e dos nossos preconceitos, para só pensarmos nos outros e não perturbarmos a serenidade desta vida...” (Graça Aranha. Canaã, 1996.)
Tomado na totalidade da leitura do romance Canaã, pode-se dizer que o fragmento acima expressa a ideia da personagem principal, que desfaz a ideia romântica de que a civilização corrompe o homem. Em oposição a essa ideia, Milkau propõe:
a) Uma alternativa que seja constantemente perseguida a ideia de uma vida de sacrifício, mas sem esmorecimento, próprio das raças inferiores.
b) Uma vida humilde, “entre gente simples”, na qual os homens se afastariam dos sentimentos negativos, como a cólera e o ódio, e viveriam irmanados em sentimentos de “resignação amorosa”, “tranquilos e amáveis”, plenos de bondade e de paz para apreciarem a serenidade da vida.
c) Uma vida em recomeço, onde a humildade, a integridade moral e a busca constante do processo humanizador esteja em primeiro lugar.
d) Uma vida em que a busca por riquezas ou grandezas, como querem seus conterrâneos seja possível, desde que não se leve em consideração o domínio das raças – ou a superioridade de uma raça sobre outras.
e) Uma luta em que, pela força se possa superar o domínio das raças, impondo uma espécie de justiça e igualdade, onde uma só raça se destaque: a humana.
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a)
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