EXERCÍCIO DE INTERPRETAÇÃO COM TEXTO “NA ESCURIDÃO MISERÁVEL”
Na escuridão Miserável
Fernando Sabino
Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o motor em movimento. Voltei-me e dei com uns olhos grandes e parados como os de um bicho, a me espiar, através do vidro da janela, junto ao meio-fio. Eram de uma negrinha mirrada, raquítica, um fiapo de gente, encostada ao poste como um animalzinho, não teria mais que uns sete anos. Inclinei-me sobre o banco, abaixando o vidro:
-O que foi, minha filha? - perguntei, naturalmente pensando tratar-se de esmola.
-Nada não senhor - respondeu-me, a medo, um fio de voz infantil.
-O que é que você está me olhando aí?
-Nada não senhor - repetiu. - Esperando o bonde...
-Onde é que você mora?
-Na Praia do Pinto.
-Vou para aquele lado. Quer uma carona?
Ela vacilou, intimidada. Insisti, abrindo a porta:
-Entra aí, que eu te levo.
Acabou entrando, sentou-se na pontinha do banco, e enquanto o carro ganhava velocidade, ia olhando duro para a frente, não ousava fazer o menor movimento. Tentei puxar conversa:
-Como é o seu nome?
- Teresa.
- Quantos anos você tem, Teresa?
-Dez.
-E o que estava fazendo ali, tão longe de casa?
-A casa da minha patroa é ali.
-Patroa? Que patroa?
Pela sua resposta pude entender que trabalhava na casa de uma família no Jardim Botânico: lavava, varria a casa, servia a mesa. Entrava às sete da manhã, saía às oito da noite.
-Hoje saí mais cedo. Foi jantarado.
-Você já jantou?
-Não. Eu almocei.
-Você não almoça todo dia?
-Quando tem comida pra levar, eu almoço: mamãe faz um embrulho de comida para mim.
-E quando não tem?
-Quando não tem, não tem - e ela até parecia sorrir, me olhando pela primeira vez. Na penumbra do carro, suas feições de criança, esquálidas, encardidas de pobreza, podiam ser as de uma velha. Eu não me continha mais de aflição, pensando nos meus filhos bem nutridos - um engasgo na garganta me afogava no que os homens experimentados chamam de sentimentalismo burguês.
-Mas não te dão comida lá? - perguntei, revoltado.
- Quando eu peço eles me dão. Mas descontam no ordenado, mamãe disse pra eu não pedir.
-E quanto você ganha?
-Mil cruzeiros.
-Por mês?
Diminuí a marcha, assombrado, quase parei o carro, tomado de indignação. Meu impulso era voltar, bater na porta da tal mulher e meter-lhe a mão na cara.
-Como é que você foi parar na casa dessa... foi parar nessa casa? - perguntei ainda, enquanto o carro,
ao fim de uma rua do Leblon, se aproximava das vielas da Praia do Pinto. Ela disparou a falar:
-Eu estava na feira com mamãe e então a madame pediu para eu carregar as compras e aí noutro dia pediu à mamãe pra eu trabalhar na casa dela então mamãe deixou porque mamãe não pode ficar com os filhos todos sozinhos e lá em casa é sete meninos fora dois grandes que já são soldados pode parar que é aqui moço, brigado.
Mal detive o carro, ela abriu a porta e saltou, saiu correndo, perdeu-se logo na escuridão miserável da Praia do Pinto.
(A companheira de viagem. 4.ed. Rio de Janeiro, Record, 1977. p.135-7).
Vocabulário:
mirrado: muito magro, definhado;
raquítico: pouco desenvolvido, franzino;
jantarado ou ajantarado: refeição servida depois da hora habitual do almoço para suprimir o jantar;
esquálido: sujo, desalinhado;
Praia do Pinto: praia da Lagoa Rodrigo de Freitas, local onde havia uma grande favela, hoje extinta.
Sugiro aqui que os alunos respondam as questões numa folha separada.
1) O texto é narrado em primeira ou em terceira pessoa? Transcreva um verbo do primeiro parágrafo que justifica sua resposta.
2) Assim que foi sair do carro, o narrador notou que estava sendo observado por alguém. Quem era?
Descreva essa pessoa.
3) Por que a garota hesitou em aceitar a carona oferecida pelo narrador?
4) Qual era o trabalho da menina? Quantas horas trabalhava por dia?
5) Como era tratada a menina na casa em que trabalhava?
6) Qual a diferença entre a menina e os filhos do autor?
7) Qual foi a reação do narrador quando soube o salário da menina?
8) “Dei com uns olhos grandes e parados como os de um bicho...”
“... encostada ao poste como um animalzinho...”
Por que o narrador compara a menina a um bicho e a um animalzinho?
9) A menina disse que tinha 10 anos, mas o narrador achou que ela tivesse apenas 7. Que fatores o levaram a pensar isso?
11) Qual foi o objetivo do autor ao relatar esse fato? Será que ele só quis contar algo que deve ter acontecido com ele ou teve intenção de demonstrar algo mais do que isso? Diga o que você pensa.
12) Segundo a Constituição da República Federativa do Brasil, a idade mínima para admissão ao trabalho é 14 anos. No entanto, há no Brasil cerca de 2,9 milhões de trabalhadores entre 10 e 14 anos. Por que você acha que isso ocorre?
15) O autor não pontuou a fala da menina. Qual foi a intenção do autor utilizando este recurso?
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Soluções para a tarefa
Resposta:
1) O texto é narrado em primeira pessoa. O verbo " entrei" indica que o texto é narrado em primeira pessoa.
2) De acordo com o texto ele diz assim sobre a menina " Eram de uma negrinha mirrada, raquítica, um fiapo de gente, encostada ao poste como um animalzinho, não teria mais que uns sete anos."
3) Porque ela ficou envergonhada.
4)Ela trabalhava em uma família que morava no Jardim Botânico. Ela lavava, varria a casa, servia a mesa etc. Entrava às sete da manha e saia por volta das oito da noite.
5) Ela era tratada com desprezo. Por exemplo, se ela pediu um pouco de comida eles descontavam do salário dela.
7) Ele ficou espantado.
8) Pelo seu aspecto físico (mirrada, raquítica), sua atitude (espiando com olhos grandes e parados), sua solidão (sozinha, junto ao meio-fio), não lembram um ser humano, mas um bicho, um animalzinho.
9) Porque era miúda, magrinha, desnutrida.
11) Na minha opinião eu acho que quis mostrar O absurdo do trabalho infantil; a injustiça social; a maldade humana; o contraste entre boas condições de vida e condições miseráveis de vida.
12) Muitas das vezes o trabalho infantil ocorre por pobreza, má qualidade da educação e questões culturais.