Eram entre nove e dez horas de um dia ensolarado de outubro. Vindo de Natividade para
Porto Nacional, o ônibus da Paraíso, velho, sujo e barulhento sacolejava pela estrada
buraquenta,cuspindo fumaça e levantando uma poeirama dos diabos. Isso em 1982, num ponto
qualquer entre Santa e Silvanópolis.
Como sempre, a geringonça vinha apinhada de passageiros, mercadorias e bagagens:
sacos, sacolas, malas, bruacas e toda sorte de pacotes, cheios de toda sorte de bugigangas, que
não cabiam no bagageiro e, por isso, disputavam o lugar com os passageiros.
Naquele sufoco, os cheiros que se misturavam ao calor tornavam o ar tão pesado que
dava para cortá-lo em fatias. O chulé, de mãos dadas com o bodum do sovaco, o cheirinho de xixi
dos bebês misturado com o perfume dos pequis ( era outubro, lembra? ), além de outros cheiros
difíceis de identificar, transformavam o interior do ônibus num inferno para as narinas
desacostumadas.
Por isso, foi um enorme alívio quando o motorista deu um grito:
__ Olha o quati!
E, freando bruscamente o ônibus, desceu correndo para o Cerrado.
Foi o que bastou para o coletivo se esvaziar num piscar de olhos, e homens, mulheres e
crianças saírem correndo Cerrado adentro, onde o animalzinho, assustado, ziguezagueava
atarantada por entre as moitas do agreste em busca de uma árvore salvadora. Encontrou-asubiu rápido. Mas a árvore era pequena e frágil, foi sacudida com violência pela horda de
vândalos, e o quati, aterrorizado, despencou de lá de cima, olhou apavorado seus carrascos em
círculo, viu uma brecha e meteu-se nela.
Não sei por que cargas d’água meus maus instintos de antigo caçador ( ou matador )
despertaram num momento e, quando o animalzinho passou ao meu lado, desferi-lhe um bruto
pontapé no quarto traseiro que o fez cair e rolar, não sem antes virar-se para mim com a dentuça
arreganhada. Rápido, antes que ele se levantasse, peguei-o pela ponta do rabo e ergui-o de
cabeça para baixo. Eu saí caminhando triunfante no meio de todos aqueles caçadores
improvisados, que dominaram o bichinho e o imobilizaram com a maior facilidade.
Ainda hoje lembro o olhar do quati. Não era ódio. Acho que os quatis não odeiam. Era
medo, pânico, era a certeza de que seus dias tinham chegado ao fim. Quem disse que os bichos
não têm consciência?
O motorista sorria feliz e lambia os beiços, antegozando o lauto banquete.
Terminada a “gloriosa” batalha, o ônibus roncou e seguiu seu caminho. Foi aí que eu
percebi uma dorzinha no meio do meio da canela direita. Passei a mão e notei que a calça estava
toda encharcada, pegajosa e rasgada. Vi sangue na mão molhada. Puxei a perna da calça para
cima, olhei a canela e lá estava uma corte profundo, do tamanho de minha boca e que começava
a doer.
Então pensei no quati e caí em mim. Senti um remorso do tamanho do mundo.
Argumentei com o motorista, supliquei que parasse o ônibus e soltássemos o bichinho. Tudo em
vão. O resto da viagem foi um tormento, muito mais pelo tardio arrependimento do que pela dor
da ferida, que ficava cada vez mais forte.
Chegando ao destino __ Porto Nacional __, fui ao Hospital São Vicente de Paula para o
curativo. Levei cinco pontos e me levaram um bom dinheiro.
Ainda hoje, quando recordo o episódio, sinto um remorso danado e tenho raiva de mim
mesmo. Eu era seguramente a pessoa mais culta naquele ônibus. Sabia das coisas. Devia ter me
valido de minha autoridade e impedido o crime. Não! Fui o principal criminoso. Não fosse por
mim, homem, rei da criação, animal racional, o animalzinho irracional, o quatizinho, estaria vivo e
feliz,solto pelo Cerrado, inofensivo, emprestando à linda natureza de começo das chuvas a graça
de seu jeito maroto e descontraído, pondo vida e movimento na verde placidez da paisagem.
Cinco pontos e uma cicatriz!
Bem feito!Atividade de análise do conto “O quati”
Questões
1) No primeiro parágrafo, o narrador situa os acontecimentos no espaço e no tempo. Onde e
quando eles ocorreram?
2) Que tipo de narrador o texto apresenta? Justifique com elementos do texto.
3) Quem são as personagens envolvidas na história?
4) Enumere a 2ª coluna de acordo com os itens da 1ª.
(a) Situação inicial. ( ) o motorista vê o quati e
para o ônibus.
(b) Conflito. ( ) a avaliação e o lamento do motorista
na sua participação na perseguição do quati.
(c) Clímax ( ) o ônibus percorrendo seu caminho.
(d) Desfecho. ( ) a perseguição e o aprisionamento
Soluções para a tarefa
Respondido por
1
Resposta:
1) a noite,em outubro; entre nove dez horas da noite.
2)narrador observador, na 3° pessoa
3)os passageiros,o quati e o motorista
4)(A)=Terceira lacuna
(B)=segunda lacuna
(C)=primeira lacuna
(D)=Obviamente última lacuna.
Bons estudos.(que bom que tá estudando na quarentena hehe)
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