Em época de pandemia como a democracia pode fazer a diferença?
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Resposta:
A pandemia está levando os governos a tomar medidas drásticas para conter o avanço da enfermidade e de seus efeitos sociais e econômicos. Isso inclui, por exemplo, o adiamento de eleições, como já ocorreu na Bolívia, que cancelou a votação do dia 3 de maio para a escolha de um novo presidente — considerada essencial para que o país voltasse à normalidade democrática.
Outro argumento que tem sido usado para defender o cancelamento das eleições municipais deste ano é o de direcionar os recursos (do Fundo Eleitoral, por exemplo) para o combate à doença e à mitigação dos impactos sociais e econômicos. O pleito poderia ser empurrado para 2022, quando seria realizado junto com as eleições para cargos em nível federal e estadual. Isso unificaria de vez as eleições.
A verdadeira ameaça à democracia está em outros efeitos colaterais da pandemia. E alguns desses exemplos são:
Propaganda enganosa – O governo chinês está sutilmente aproveitando a pandemia para passar uma mensagem simples, mas poderosa: a de que um Estado totalitário tem melhores condições de impor as medidas draconianas necessárias para conter a disseminação de um vírus. O anúncio de que a situação na Itália está pior do que no auge da epidemia na China, onde o número de novos casos já está caindo, chegou a ser comemorado por meios de comunicação estatais chineses. Afinal, na Itália, uma democracia, impor uma quarentena é mais complicado. Já há mais italianos sendo processados por violar a ordem de isolamento do que o número total de contaminados no país. O governo chinês, por sua vez, m adotando um discurso duplo: primeiro, de negar que tenha negligenciado a epidemia em sua origem; segundo, demonstrar que está conseguindo superar rapidamente a pior fase do alastramento da doença e que já começa a retomar inclusive a atividade econômica, graças à capacidade de impor medidas com rapidez e eficiência, sem contestação. Especialistas chineses que foram à Itália para dar assistência na contenção da pandemia têm criticado duramente a incapacidade do governo do país europeu em impor as medidas de quarentena.
Vigilância tecnológica —Diversos governos demonstram a tentação de usar as novas tecnologias móveis para vigiar os cidadãos. Em Israel e em Singapura isso já está acontecendo, com o intuito de saber quem entrou em contato com pessoas contaminadas e, portanto, deve entrar em isolamento. Mesmo na Itália há uma discussão sobre a possibilidade de monitorar os movimentos das pessoas pela geolocalização de seus aparelhos celulares, com o objetivo de descobrir quem está violando a quarentena. A medida abre um perigoso precedente e entra em conflito com questões como privacidade e liberdade individual. Trata-se de algo que a China já vem adotando, a ponto de, segundo reportagem do jornal americano New York Times, as autoridades estarem dando ordens individuais de quarentena sem que as pessoas afetadas saibam o motivo. A explicação pode estar em um aplicativo de monitoramento de dados de saúde que os cidadãos estão sendo instados a usar.
Restrição de liberdade de movimento — Mesmo sem monitoramentos por celular ou outras medidas mais invasivas à privacidade, a sensação de controle estatal, normalmente mais suave em regimes democráticos, aumenta consideravelmente, ainda que sob condições que, pelo bem comum, sejam justificadas. Neste fim de semana, por exemplo, foram instaladas barreiras na entrada de Botucatu, uma cidade do interior de São Paulo, para medir a temperatura de motoristas e passageiros do carros. Quem estivesse com febre, seria escoltado para atendimento médico. Tentativas como essa, de isolar cidades inteiras do contato com o vírus, replicando medidas extraordinárias adotadas nas fronteiras nacionais, tendem a se replicar em diversas partes e em diferentes graus, aumentando as restrições à liberdade de ir e vir, um pilar essencial das democracias.
Governos nacionais desafiados —A pandemia está criando tensões entre governos locais e nacionais não apenas no Brasil, mas também em outros países. Na Itália, por exemplo, há governadores pedindo a atuação do exército para impor a quarentena, ao mesmo tempo em que criticam outras medidas consideradas excessivas, como a ideia de monitorar os celulares dos cidadãos.
Há bons argumentos para considerar que muitas das medidas que, numa situação normal, seriam consideradas autoritárias, são necessárias em uma pandemia como a que o mundo está vivendo. Mas é preciso estar vigilante para que elas não extrapolem o que a urgência exige e se tornem instrumentos pessoais de poder.
Em tempos de guerra ou de calamidade pública, os regimes democráticos têm a legitimidade popular para tomar decisões drásticas pelo bem coletivo. A preocupação deve ser com os abusos, que podem abrir a porta para um contexto autoritário que perdure muito além da pandemia.