Artes, perguntado por liviaalvares2932, 11 meses atrás

Descreva a dualidade que se destaca em uma cena do filme O auto da Compadecida...

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Respondido por gabrielaformal
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Atmosfera circense
A peça "Auto da Compadecida", escrita por Ariano Suassuna em 1955, obteve grande destaque ao ser encenada no Rio de Janeiro, em 1957, por ocasião do 1º Festival de Amadores Nacionais. O Brasil descobria ali um novo tipo de teatro, calcado na tradição popular.

O enredo da peça é um trabalho de montagem e moldagem baseado em uma tradição antiquíssima, que remonta aos autos medievais de Gil Vicente e mais diretamente a inúmeros autores populares que se dedicaram ao gênero do cordel. Nesse tipo de literatura, os criadores contam e recontam as mesmas histórias e acrescentam o seu toque pessoal. Reconhecer esse “toque pessoal” de cada trabalho artesanal, contudo, exige do observador grande atenção aos detalhes.

A peça tem um pequeno texto introdutório que visa a orientar a encenação e a explicar, em linhas gerais, o espírito da obra: “O Auto da Compadecida foi escrito com base em romances e histórias populares do Nordeste. Sua encenação deve seguir, portanto, a maior linha de simplicidade, dentro do espírito em que foi concebido e realizado (…)”.

Um pouco adiante, o autor sugere ainda que na primeira cena se utilize o palco como um “picadeiro de circo”. De fato, nessa cena, todos os personagens (com exceção de Manuel, o Jesus, representado por um ator negro, que fica escondido para preservar o efeito de surpresa) apresentam-se ao público fazendo mesuras e são anunciados em voz alta pelo Palhaço, numa atmosfera circense.

A primeira fala da peça cabe ao Palhaço, e a orientação do autor é que seja realizada em “grande voz”: “Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão, um padre e um bispo (…)”.

Após um “toque de clarim”, o assunto da peça é anunciado pelo Palhaço: “A intervenção de Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da misericórdia. Auto da Compadecida!”

Todos esses elementos antecipam partes da narrativa: desde a apresentação prévia dos personagens até o anúncio de que será realizado um julgamento e que nele Nossa Senhora intervirá de forma a salvar os condenados.

O espectador pode se perguntar: para que antecipar o que vai acontecer e estragar a surpresa? O fato é que, nesse tipo de tradição, o que importa não é um final inesperado. O que deve ser apreciado é o “como se fez”, ou seja, a habilidade do autor ao trabalhar o material conhecido de todos.

Fenômeno parecido pode ser observado no romance Dom Quixote, no qual os títulos de cada um dos inúmeros capítulos antecipam os acontecimentos que depois serão contados detalhadamente. Esse prazer de contar e recontar histórias é típico da tradição oral e está quase extinto em nossos dias, em virtude de mudanças históricas que fazem com que o homem contemporâneo não tenha tempo nem disposição para ouvir repetidas vezes as mesmas histórias.

Comentário do professor
Confira a seguir o comentário do prof. Marcílio B. Gomes Jr, da Oficina do Estudante de Campinas (SP):

"Auto da Compadecida", peça teatral de Ariano Suassuna, é um auto (peça de apenas um ato) que consubstancia a tradição do teatro medieval português ao contexto social e histórico do nordeste brasileiro. O argumento da peça gira em torno das aventuras quixotescas de João Grilo, um tipo pitoresco que protagoniza os acontecimentos de forma absolutamente imaginosa, e seu companheiro Chicó. Ambos se envolvem no caso do cachorro da mulher do padeiro, comprometendo um número considerável de personagens que, em meio às confusões armadas pelas mentiras de João Grilo, vão se enredando numa trama que culmina com o julgamento de algumas delas diante de Jesus, da Virgem Maria e do Diabo.

Dentre as personagens que atuam nessa trama, estão o Padeiro e sua mulher, o Padre, o Sacristão, o Bispo, o cangaceiro Severino, o Major Antônio Morais. Ao longo da peça, o autor fixa certas linhas de força que caracterizam bem o teatro brasileiro, especialmente o nordestino. Uma dessas linhas de força é a carga religiosa, especificamente o catolicismo, que se articula na lógica interna da peça, por meio do binômio “bem e mal”. Trata-se, na verdade, de um desdobramento da forte cultura religiosa do nordestino, que se apega a Deus e teme as influências do mal. Essa intervenção do elemento religioso deriva também da tradição do teatro medieval (ou mesmo vicentino), já que durante a Idade Média as manifestações artísticas estiveram sempre vinculadas à Igreja.


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