CRÔNICA
Tenho enorme admiração por esses tenores que cantam ópera nas janelas para entreter os vizinhos durante a quarentena. Há ainda aquelas pessoas que tocam instrumentos musicais (“Ode à Alegria”, de Beethoven, é uma opção comum), dão aulas de ginástica, projetam filmes nas fachadas, parabenizam coletivamente os aniversariantes e cantam bingo (aconteceu na Espanha).
Meus vizinhos – coitados – não têm tanta sorte. Só o que eles ouvem a tarde toda é minha voz sem graça narrando, da varanda, acontecimentos absolutamente prosaicos para minha filha, Mabel, de quase 2 anos. (É o que dá ser vizinho de escritora.)
Outro dia, por exemplo, devem ter acompanhado com desânimo minha arrastada descrição de uma moça de blusa azul descendo a escadaria da rua: “Ela vai descer devagarzinho, olha só, segurando no corrimão… Que cuidadosa! Ela está carregando uma sacola? Ou é uma bolsa? Para onde será que está indo?” Observamos em silêncio o percurso da mulher, que agora caminha pela calçada. “Ela vai trazer bolo para a Mabel”, responde a minha filha depois de pensar um pouco. Acho essa hipótese bastante digna.
Desviamos a atenção para um senhor que passeia com os cachorros. “Olha! Acho que é o Francesco!”, eu grito, com excessiva alegria, referindo-me a um golden retriever do nosso prédio. Mabel não dá muita bola e começa a brincar de achatar o nariz no vidro.
Peço sinceras desculpas aos vizinhos, mas estamos fazendo o possível para nos entreter nesta quarentena. Conversar é o que há de mais prático em nosso limitado arsenal de distrações, sobretudo quando as respostas podem ser tão engraçadas. Minha expertise na função de cronista de varandas veio bem a calhar. Quando o tempo está bom, passamos um sem-número de horas nesse espaço exíguo observando o (pouco) movimento e nos alimentando de qualquer migalha de agitação registrada nas redondezas. Um ponto alto da nossa tocaia ocorreu duas semanas atrás, quando uma menina disparou a correr pela rua até alcançar uma amiga, que seguia bem à frente.
“Corre muito!”, reparou minha filha, com verve de comentarista de olimpíada. Foi eletrizante o reencontro. “Será que elas vão pegar o trenzinho juntas?”, especulei, apontando para a estação de metrô. “O coronavírus está na cola dela”, disse Mabel, do nada. Passamos dias rememorando o episódio. Os vizinhos já devem ter ouvido dezenas de elegias ao ocorrido, todas caudalosas feito parágrafos proustianos sem sombra de ponto-final.
O vizinho da frente, aliás, continua acendendo as luzinhas de Natal toda noite. (Já passamos da Páscoa.) Nós fazemos o mesmo, naquilo que eu não sei mais se é uma competição acirrada ou um solidário meneio de cabeça. Outro vizinho acena de vez em quando para nós. Ele fica sentado na varanda por longos períodos e deve observar com curiosidade a nossa dupla sapateando, pulando e fazendo movimentos aleatórios de ioga. Às vezes, Mabel usa a minha barriga como tambor. Ou então ficamos brincando com as sombras, abrindo e fechando as cortinas, catando fios de cabelo no chão, contando quantos carros vermelhos passam na rua. Até os sinos da igreja servem de tópico para as nossas histórias.
Por uma dessas tristes ironias, moramos perto de um estacionamento de ambulâncias do Hospital Sancta Maggiore. Um de nossos passatempos mais recorrentes hoje em dia é acompanhar o movimento das ambulâncias subindo e descendo a ladeira do estacionamento. Ficamos imaginando que os veículos são amigos e trabalham o dia todo levando pessoas ao hospital, mas sempre voltam para descansar e compartilhar as novidades. As sirenes são seus gritos agudos, as luzes vermelhas são um recado de que vão voltar.
Um dia apareceu no chão da varanda um enorme besouro morto, já meio seco. Cantamos uma música para ele e ficamos conversando baixinho sobre a vida de aventuras que ele teria levado. Em outra ocasião, acompanhamos a saga de uma aranha tentando subir pela parede e caindo repetidas vezes. Juro que não fiz nenhuma analogia de autoajuda. O vento é outro fenômeno que serve de assunto para nossas infinitas confabulações: basta soprar uns balões e deixá-los na varanda para que comecem a dançar para lá e para cá.
Quando venta forte, temos assunto. Quando o ar está parado, idem. Comentamos o cheiro de sopa, de bife à milanesa e de pipoca que vem das outras janelas. Compramos ovos imaginários para os vizinhos e saímos distribuindo a todos os interessados. (Para Mabel, não há quem resista a um bom prato de ovos mexidos.)
E temos também a Lua, as estrelas e o planeta Vênus; a estação espacial internacional e os satélites Starlink; as nuvens carregadas e os pedaços de céu azul. Poucos. Mas suficientes
* Leia a crônica "As locutoras da quarentena". * Resuma o texto com suas próprias palavras.
* Escreva a sua opinião sobre a crônica.
Soluções para a tarefa
Resposta:
A crônica traz um relato das atividades de uma mãe e de uma criança pequena nos momentos iniciais da mudança total de nosso cenário, causada pela pandemia. A alteração provocada pelo isolamento social em razão da pandemia do coronavírus resultou em muitas situações que não estavam programadas e que saíram completamente da sua rotina e normalidade. Por exemplo, as crianças, os jovens e os adultos não foram para a escola e passaram a ficar em casa, acompanhando de suas residências as aulas.
No caso de Vanessa Bárbara, Mabel, sua filha pequenina, provavelmente iria para uma creche infantil. Iria, mas não foi. Teve e tem que ficar em casa, onde sua mãe, que passou a trabalhar ali também, tem que permanecer praticamente sem saídas para a rua.
Essa nova situação, de permanecer todo o tempo em casa, no momento em que a casa se transformou na sala de aula e também no escritório, tem levado as pessoas a variadas reações. Umas ficam tranquilas, fazendo uma série de atividades, como leitura, cursos pela internet, assistem muito mais tevê, dão conta de séries com muitos episódios. Mas outras têm mais dificuldade, não conseguem se concentrar em tudo, angustiam-se por não poderem ver a rua e o movimento. Há pessoas que têm conseguido trabalhar e estudar e ficar com a família toda dentro de casa, porém nem todas as famílias e as casas são iguais – muito ao contrário.
Inventar brincadeiras e atividades para distrair as crianças pequenas, muito cheias de energias, tem sido tarefa de muitos pais e mães, como é o caso de Vanessa.
Assim, cada um à sua maneira vai criando um jeito para passar tantas horas sem poder sair para a rua e sem poder frequentar lugares que ainda estão com restrições.
Essa nova maneira de viver por causa da pandemia está criando novas formas de enfrentar o dia a dia, a rotina em casa e, nessa rotina, não falta o olhar e a observação do que acontece de fato com os vizinhos, já que se fica mais tempo olhando para os lados e para os vizinhos.
A realidade também aparece nessa vizinhança de Bárbara, quando cita o hospital que está muito perto de sua casa, onde a movimentação tem sido intensa, por conta dos doentes.
As coisas, as ações que os vizinhos andam fazendo “fora do comum”, ou fora da rotina também estão no texto. Gente que já estava com luzinhas de Natal em pleno primeiro semestre do ano, ou pessoas que passaram a cozinhar em casa, sem nunca ter fritado um ovo na vida.
Essa capacidade da crônica em trazer para o leitor o que está acontecendo dentro de cada cantinho de nossa casa em tempo real é uma das marcas desse texto.
Como já vimos no texto de Tiago Germano, o humor também está presente na crônica, embora aqui, na de Vanessa Bárbara, seja em tom mais tímido. O riso infantil, inocente, sem os vícios dos adultos está ali na figura de Mabel, e oferece ao leitor essa oportunidade de também exercitar o olhar para situações mais ligadas à intimidade das casas.