como karl marx reconhece a democracia ?
Soluções para a tarefa
Marx afirma, na Crítica da filosofia do direito de Hegel, que "a democracia é o enigma resolvido de toda constituição" (Marx, 1992a [1843], p. 87). Mais do que conceber a democracia como um enigma, Marx a concebe como um "enigma resolvido" (aufgelöste Rätsel). Um enigma resolvido é aquele que se sabe ser a solução do próprio problema para o qual aponta. Trata-se de um conceito que contém em si simultaneamente um enigma e a solução capaz de decifrá-lo. Na qualidade de enigma resolvido de toda constituição, a democracia marxiana apresenta-se como resposta para os problemas levantados pelas formas políticas. O principal destes problemas, de acordo com Marx, diz respeito à contradição entre o Estado e a sociedade civil. É este, afinal, o enigma da modernidade política, que o mais astuto dos discípulos de Hegel soube logo cedo diagnosticar. Ao romper com seu mestre e recusar à política qualquer forma de mediação, Marx faz de seu conceito de verdadeira democracia (wahre Demokratie) a resolução do enigma colocado pelo Estado moderno.
Isso explica por que "na democracia o Estado abstrato deixa de ser o momento governante" (Idem, p. 89). Quando a democracia atinge a sua verdade, ela supera a si mesma, encontrando sua real expressão no processo de desvanecimento do Estado e da sociedade civil – única solução possível para dois extremos reais que, como tais, não admitem mediação. Com a superação (Aufhebung) destes, o político encontra-se definitivamente com o social, e nenhuma relação de subordinação ou dependência passa a ser possível entre uma e outra esfera. No entanto, a realização da democracia foi modernamente concebida na forma de um "Estado democrático": uma aliança impertinente entre dois termos inconciliáveis, afinal "todas as formas de Estado têm a democracia como sua verdade e por esta razão elas são falsas, na medida em que não são a democracia" (Idem, ibidem).
O Estado que desvanece com a verdadeira democracia consiste na forma ilusória daquela que deve ser a comunidade política real (wirklich Gemeinschaft), ou seja, ele é um produto da alienação política. As "falsas democracias", ou as democracias que não são verdadeiras, necessariamente coincidem com uma forma de Estado, seja ela aristocrática, monárquica ou republicana. A verdadeira democracia, por sua vez, não se identifica com nenhuma dessas formas e, ao contrário, se insurge em oposição a elas. A concepção de democracia de Marx é concomitantemente uma democracia para além do Estado (Avineri, 1968, p. 38) e contra o Estado (Abensour, 1998 [1997]) e, nesse sentido, ela rejeita todas as formas políticas que acompanham a moderna idéia de Estado. Por isso, o principal pressuposto do pensamento político de Marx é justamente o de que a contradição entre o Estado e a sociedade civil deve ser superada para que, então, se possa encontrar o verdadeiro significado da democracia. E isso implica pensar a política para além do Estado; ou melhor, isso implica conceber uma outra forma de organização política que possa servir de lugar à democracia.
O objetivo deste artigo consiste em examinar o conceito marxiano de verdadeira democracia, tal como desenvolvido, sobretudo, na Crítica da filosofia do direito de Hegel, de maneira a indicar o modo pelo qual ele se apresenta como o "enigma resolvido" das formas modernas de organização política. Nesse sentido, argumentarei que tal enigma aponta para a contradição entre Estado e sociedade civil que, para Marx, constitui a principal característica da modernidade política. Em conseqüência, argumentarei também que como solução do enigma que revela, a "verdadeira democracia" implica na superação daquela contradição, a qual apenas pode se dar mediante a criação de um novo lugar para a política: a comunidade real fundada em uma livre associação de homens igualmente livres.