como a antropologia pode atuar em eventos descritos como escala global?
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Resposta:
primeiro ponto a ser considerado é o da qualidade. A antropologia costumeiramente treina as suas pesquisadoras e pesquisadoras com métodos qualitativos. Assim, números, casos, estatísticas ou prevalências têm rosto, trajetória e biografia para as suas pesquisas. Eles partilham experiências e compõem ambientes singulares. Então, a pandemia precisa ser considerada como uma experiência vivida nos corpos e nas sensibilidades coletivas. Cada experiência conta; faz história. E, nós seguimos essas histórias e aprendemos com elas.
O segundo ponto é que é preciso ter em mente que fenômenos globais são sempre atuados a partir de contextos locais. O global se realiza a partir de materialidades e práticas situadas. Como já nos ensinou a antropóloga Anna Tsing em seu livro Friction, converter dados locais em escala global é um modo perverso de fingir universalidade. Não há dúvidas que a China tem uma experiência pioneira com a Covid-19 e temos muito a aprender com o conhecimento que ela acumulou, incluindo os números e as estatísticas. Mas, a doença, seus números e a vida na China é uma experiência única e não pode ser usada como parâmetro global sem alguma crítica. Eu estou pensando em algumas características particulares amplas, mas locais, de certas populações, como a de ser criança, jovem ou idoso, rico ou pobre, por exemplo. Penso no que se come, no quanto se fuma, o quanto se pratica de exercícios, como são as rotinas de trabalho, incluindo a sua emergente precarização. Eu também me refiro a situações ambientais como a exposição à poluição e os efeitos locais das mudanças climáticas. Por fim, eu ainda penso nos direitos fundamentais, no acesso universal a informação e à saúde, às fontes de água e alimento seguros, e ainda aos níveis de violência doméstica e de gênero. Performar a universalidade de grupos de risco é em si um risco que precisa ser problematizado. A antropologia em particular e as Ciências Sociais de maneira geral têm ferramentas para nos ajudar com isso. Por exemplo, tratar idoso como sendo grupo de risco precisa levar em consideração o que é viver (trabalhar, se aposentar, ter projeto) e envelhecer em certos contextos. Dizer que crianças são menos propensas à Covid-19 precisa considerar os ainda altos níveis de subnutrição vividos em diversos locais mundo afora. Até a aparentemente trivial fórmula “água e sabão” salva vidas precisa ser situada. Sabidamente, muitas comunidades economicamente vulneráveis e vítimas de um racismo ambiental estruturado não têm água nas torneiras de forma regular e segura. Sabão é item de luxo. Praticar isolamento em casa implica em ter casa, e ter cômodos separados em quantidade suficiente para os seus moradores. E, como já alertou a antropóloga Debora Diniz, “o lar” nem sempre é um lugar seguro para quarentena, especialmente para as mulheres, em tempos de tamanha taxa de violência doméstica e feminicídio.
O ponto é que a internacionalização da ciência e da saúde a partir do fim do século XIX até a sua aposta na transnacionalização por meio da Global Health nos acostumou com o cruzamento de fronteiras e escalas. A promulgação da universalidade dos vírus, das bactérias, e dos vetores e seus efeitos têm permitido desde então a colonização dos conhecimentos locais sobre saúde e doença. Quando uma doença como a Covid-19 se espalha, ela leva consigo a sua ciência e suas técnicas. Ela transpõe métricas locais, estatísticas e ações, e isso pode provocar inúmeros equívocos. Os números podem ser universais, mas os fenômenos e experiências que eles descrevem não são. Hoje, a Covid-19 é uma doença em escala global, mas isso não faz dela um fenômeno universal e a antropologia e as Ciências Sociais são imprescindíveis neste momento para pensar de forma situada os seus efeitos.