Atividade 1-Qual relação é estabelecida entre a palestra de José Tolentino Mendonça e os textos de Clarice Lispector.
CLARICE LISPECTOR
A sede do outro – por Bruno Cosentino
Soluções para a tarefa
Resposta:
Todo ano, após o carnaval, tem início, no calendário litúrgico da Igreja Católica, a Quaresma, período em que os fiéis se retiram da vida mundana para se dedicar a sacrifícios, caridades e orações. Em 2018, o Papa Francisco convidou o padre e poeta português José Tolentino Mendonça para proferir a palestra que orientaria as reflexões da Cúria Romana sobre os desafios enfrentados pela Igreja naquele ano. O tema escolhido por Tolentino, nomeado arcebispo para a ocasião (e anunciado cardeal no dia 1º deste mês de setembro), foi a “sede de Jesus”. O texto da palestra foi publicado em livro, sob o título Elogio da sede (pela Quetzal, em Portugal, e no Brasil, pela editora Paulinas).
A apresentação começa com o episódio, descrito no Evangelho de São João, em que Jesus encontra a mulher samaritana no poço de Jacob (João 4:5-24). Jesus fazia a travessia entre a Judeia e a Galileia, quando, cansado, para à beira do poço para descansar e a mulher chega ali para buscar água. Ele a vê e lhe diz: “Dá-me de beber”. Logo de início, Tolentino nos previne que não é de água a sede de Jesus; trata-se de uma sede maior: “a sede de tocar as nossas sedes, de contactar com os nossos desertos, com as nossas feridas”.
Se no poço de Jacob Jesus pede de beber à samaritana, no final das Escrituras, faz o contrário; se oferece, como fonte: “O que tem sede aproxime-se […]”, diz. E torna explícita a metáfora: “[…] beba gratuitamente da água da vida” (Apocalipse 22:17). O tema volta a aparecer, desta vez em forma de súplica, nas últimas palavras pronunciadas por Jesus na cruz. Ele diz somente isto: “Tenho sede”. Podemos, portanto, situar Jesus no meio do caminho: ele é tanto aquele que sacia a sede — com a “água da vida” (de sua vida) — como o que tem sede do outro. Ele atravessa e é atravessado. Está na encruzilhada.
Conectar com a nossa sede, observa Tolentino, ainda que não seja fácil, se torna indispensável para que a vida espiritual não perca o lastro com a realidade na qual a vida pessoal e biográfica está ancorada; antes, é preciso coragem para encará-la de frente, sem vícios de olhar e livre de idealizações. Reconhecer nossa sede é, por tudo isso, assumir uma falta que nos é constitutiva. É coragem de se reconhecer frágil.
Ainda de acordo com Tolentino, escritores e poetas são potenciais mediadores entre as pessoas e suas sedes. Por três motivos, lista: a literatura se apresenta sem visões compartimentadas, como uma “metáfora integral da vida”; nos passa um conhecimento advindo da experiência concreta e não conceitual; e, por fim, contra as aparências forjadas socialmente, afirma a singularidade radical da existência. Posto isto, para ilustrar o efeito revigorador das letras na vida espiritual, cita um longo trecho, de que reproduzo apenas uma pequena parte, da crônica “Um ato gratuito”, de Clarice Lispector”, incluída no livro Todas as crônicas (2018):
“Uma tarde dessas, de céu puramente azul e pequenas nuvens branquíssimas, estava eu escrevendo à máquina — quando alguma coisa em mim aconteceu. Era o profundo cansaço da luta. E percebi que estava sedenta. Uma sede de liberdade me acordara. Eu estava simplesmente exausta de morar num apartamento. Estava exausta de tirar ideias de mim mesma. Estava exausta do barulho da máquina de escrever. Então a sede estranha e profunda me apareceu”.
Cabe observar uma coincidência entre a cena do encontro de Jesus com a samaritana e a de Clarice. Em ambas, há um mesmo ponto de inflexão: é o cansaço que faz irromper a sede. Da mesma forma que a sede não é somente de água, o cansaço tampouco é apenas físico; ele ganha uma dimensão existencial: estafa generalizada, oriunda de uma rotina que, por força do hábito, tende a embotar a fruição imediata com as coisas do mundo — e “o prazer é o máximo da veracidade de um ser. É a única luta contra a morte”, reivindica a personagem Ângela, de Um sopro de vida (1978).
A crônica citada por Tolentino faz par com o conto “Amor”, publicado pela primeira vez no livro Laços de família (1960). Tanto em um como no outro, o parque do Jardim Botânico — com seus troncos nodosos, pássaros voando, sombras oscilantes e secretas — é o lugar de escape do cotidiano utilitário, que vai religar a cronista Clarice (ou a personagem Ana) ao mistério da vida e à própria liberdade.
Espero ter ajudado ^_^