A Relíquia (1887) é uma das obras mais críticas do escritor realista português Eça de Queirós (1845-1900). Leia um trecho.
“Decidi compor, nos vagares deste verão, na minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos condes de
Lindoso), as memórias da minha vida - que neste século, tão consumindo pelas incertezas da inteligência e tão angustiado pelos tormentos do dinheiro, encerra, penso eu e pensa meu cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte.
Em 1875, nas vésperas de Santo Antonio, uma desilusão de incomparável amargura abalou o meu ser; por esse tempo minha tia, D. Patrocínio das Neves, mandou-me do Campo de Santana onde morávamos, em romagem a Jerusalém; dentro dessas santas muralhas, num dia abrasado do mês de Nizam, sendo Poncio Pilatos procurador da Judéia, Élio Lama, Legado Imperial da Síria, e J. Cairás, Sumo Pontífice, testemunhei, miraculosamente, escandalosos sucessos; depois voltei, e uma grande mudança se fez nos meus bens e na minha moral.
São estes casos, espaçados e altos numa existência de bacharel como, em campo de erva ceifada, fortes e ramalhosos sobreiros cheios de sol e murmúrio, que quero traçar, com sobriedade e com sinceridade, enquanto no meu telhado voam as andorinhas, e as moutas de cravos vermelhos perfumam o meu pomar.
Esta jornada à terra do Egito e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira; e bem desejaria que dela ficasse nas letras, para a posteridade, um monumento airoso e maciço. Mas hoje, escrevendo por motivos peculiarmente espirituais, pretendi que as páginas íntimas, em que a relembro, se não assemelhassem a um Guia Pitoresco do Oriente. Por isso (apesar das solicitações da vaidade), suprimi neste manuscrito suculentas, resplandecentes narrativas de ruínas e de costumes...
De resto esse país do Evangelho, que tanto fascina a humanidade sensível, e bem menos interessante que o meu seco e paterno Alentejo; nem me parece que as terras, favorecidas por uma presença messiânica, ganhem jamais em graça ou esplendor. Nunca me foi dado percorrer os lugares santos da Índia em que o Buda viveu, arvoredos de Migadaia, outeiros de Veluvana, ou esse doce vale de Rajágria, por onde se alongavam os olhos adoráveis do Mestre perfeito, quando um fogo rebentou nos juncais, e Ele ensinou, em singela parábola, como a ignorância é uma fogueira que devora o homem, alimentada pelas enganosas sensações de vida, que os sentidos recebem das enganosas aparências do mundo. Também não visitei a caverna de Hira, nem os devotos arcais entre Meca e Medina, que tantas vezes trilhou Maomé, o profeta excelente, lento e pensativo sobre o seu dromedário. Mas, desde as figueiras de Betânia até as águas coladas de Galiléia, conheço bem os sítios onde habitou esse outro intermediário divino, cheio de enternecimento e de sonhos, a quem chamamos Jesus Nosso Senhor; e só neles achei bruteza, secura, sordidez, soledade e entulho.
Jerusalém é uma vila turca, com vielas andrajosas, acaçapada entre muralhas cor de lodo, e fedendo ao sol sob o badalar de sinos tristes.
O Jordão, fio de água barrento e peco que se arrasta entre arcais, nem pode ser comparado a esse claro e suave Lima que lá baixo, ao fundo do Mosteiro, banha as raízes dos meus amieiros; e todavia vede! Estas meigas águas portuguesas não correram jamais entre os joelhos de um Messias, nem jamais as roçaram as asas dos anjos, armados e rutilantes, trazendo do céu a terra as ameaças do Altíssimo!”
(QUEIRÓS, Eça de. A Relíquia. S. Paulo: Publifolha, 1997.)
Assinale a alternativa cujo par “figura de linguagem => característica” está correto em relação ao texto.
A)eufemismo => subjetividade
B)ironia => antirreligiosidade
C)ironia => denúncia
D)paradoxo => contemporaneidade
E)gradação => objetividade
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Resposta:Letra B)ironia => antirreligiosidade
j0aovit0r:
OBG
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