A ilha da Maré
O táxi parou de novo; outro engarrafamento. O chofer parecia tão cansado como eu. Via seus ombros magros e pelo espelhinho captei um olhar azul e preciso.
Parecia velho. Mas por que a chama de teimosia nos olhos? Sorri, então, e pegamos a conversar.
“Estou há quarenta anos rodando na praça, batendo os costados por aí.
Vida dura.
Sempre morei em Santo Amaro, desde que casei. Atrás da nossa casa só tinha eucalipto. Depois veio o progresso, asfaltaram a rua e aquilo virou um inferno. Quando derrubaram o último eucalipto para abrir a marginal, a minha mulher foi lá, arrancou um pedaço da casca e pendurou na parede da sala. Hoje ela conta pros vizinhos novos:
‘É o que restou do bosque, vejam só!’
Joana é assim. Não esquece nada. As duas filhas, graças a Deus, estudaram o que quiseram. Dei duro, comi um pão amargo no começo, mas elas estudaram. Casaram já faz muito tempo. E a vida ficou um pouco mais aliviada. Cheguei a juntar uns cobres. Joana queria mobília nova. As meninas se envergonham dos nossos cacarecos. Um dia falei:
‘Pronto, Joana, vai escolher teu sofá, tua mesa, teus móveis. Toma o dinheiro.’
Mas ela não quis. Tem mãe na Bahia e encasquetou de visitar a velha. Fui amarrado, contra a vontade, mas ela preferiu assim…
Agora é que vem a loucura da minha vida. Ouça: um compadre deles estava querendo vender uma ilhota que tinha herdado. Ficava retirada no mar, na direção da embocadura do rio, e não lhe servia para nada. Comprei a ilha.
Eu, Liberato, que nunca paguei fiado, que nunca dei um passo maior que as pernas, comprei uma ilha. Eu, que deixei meus móveis cair aos pedaços para não pagar prestação, comprei uma ilha.
Voltei para cá sem um tostão no bolso, dia e noite no batente.
Todos diziam: ‘Seu Liberato ficou louco!’.
E o pior é que Joana me acompanhou. Antes de voltar para São Paulo, fomos de canoa nos despedir da ilha. Era só capim e pedra.
Subimos o pico e Joana começou:
‘Vamos fazer a casa aqui no cocuruto?’
E eu:
‘Vamos.’
‘Vamos plantar mangueiras e coqueiros e jaqueiras tudo em roda, até embaixo, na beira do mar?’
‘Vamos.’
‘A gente pode plantar dendê e ir vender na embocadura do rio, lá no estreposto.’
‘Mas nós não temos barco, Joana!’
Voltamos para São Paulo. A gente economizava, mandava um dinheirinho para lá. Aos poucos, conseguimos plantar as frutas em círculos, como ela queria. Anos depois, pudemos levantar uma cabana lá no alto. É um cômodo só, mas amplo. E o que se avista das janelas!
O mais difícil foi a lancha a motor. São muito caras, mas agora já vou dar entrada numa. Então, sim, podemos ir morar na ilha. Tenho aposentadoria e posso vender o dendê para ajudar. E as mangas.
Joana e eu já ficamos velhos e faz dez anos que a ilha está esperando nós dois.”
O táxi parou. Paguei e desci. Seu Liberato me estendeu um cartão pela janela.
“Se um dia for para lá, dê uma esticada até Rio Verde. Chegando no lugar é só perguntar pela ilha da Maré. Todos me conhecem e dá para avistar da praia muito bem, quando o tempo está claro, e a maré, baixa.”
Ergui o braço, acenando na calçada, como se estivesse no cais. Adeus, seu Liberato!
De repente comecei a enxergar: atrás dos prédios, do barulho atroz das buzinas… Lá longe, na direção da embocadura do rio… As mangueiras se espelhavam na água, uma orla de areias brancas, a ilhota…
Era o porto dos olhos cansados de Liberato.
BOSI, Ecléa. A ilha da Maré. In: BOSI, Ecléa. Velhos amigos. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
cobres: dinheiro.
cocuruto: cume; o ponto mais elevado de alguma coisa.
1 Agora, responda às questões propostas a seguir.
a. Leia esta definição de conto:
[…] o conto expressa apenas uma “fatia”, um “momento” da vida humana, um fragmento expressivo de todo. É dessa intencionalidade que surge a técnica de construção de conto: concentração de elementos (e não, expansão, como acontece no romance); uma só célula dramática, um único eixo temático, um único conflito. Os quatro elementos básicos que entram em sua composição (personagens, factos, ambiente e tempo), são iguais ao romance, apresentam-se condensados, conduzidos sem desvios para o desfecho final. O conto exige, acima de tudo, a arte da alusão, d a sugestão… […]
b. Releia este trecho: “o conto expressa apenas uma ‘fatia’, um ‘momento’ da vida humana […]”. É possível dizer que isso acontece nessa história? O que é narrado?
c. Você deve ter notado que há dois planos narrativos nessa história. Quais são eles? Como você os diferenciou ?
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Explicação:
. Você deve ter notado que há dois planos narrativos nessa história. Quais são eles? Como você os diferenciou ?
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