A ESCRAVA ISAURA, BERNARDO GUIMARÃES.
Só depois de casado Leôncio, que antes disso poucas e breves estadas fizera na casa paterna, começou a prestar atenção
à extrema beleza e às graças incomparáveis de Isaura. Posto que lhe coubesse em sorte uma linda e excelente mulher, ele não se havia casado por amor, sentimento esse a que seu coração até ali parecia absolutamente estranho. Casara-se por especulação, e como sua mulher era moça e bonita, sentira apenas por ela paixão, que se ceva no gozo dos prazeres sensuais, e com eles se extingue. Estava reservado à infeliz Isaura fazer vibrar profunda e violentamente naquele coração as fibras que ainda não estavam de todo estragadas pelo atrito da devassidão. Concebeu por ela o mais cego e violento amor, que de dia em dia ia crescendo na razão direta dos sérios e poderosos obstáculos que encontrava, obstáculos a que não estava afeito, e que em vão se esforçava para superar. Mas nem por isso desistia de sua tresloucada empresa, porque em fim de contas, - pensava ele, - Isaura era propriedade sua, e quando nenhum outro meio fosse eficaz, restava-lhe o emprego da violência. Leôncio era um digno herdeiro de todos os maus instintos e da brutal devassidão do comendador (seu pai).
Pelo caminho, como sua mente andava sempre cheia da imagem de Isaura, Leôncio conversara longamente com seu cunhado a respeito dela, exaltando lhe a beleza, e deixando transluzir com revoltante cinismo as lascivas intenções que abrigava no coração. Esta conversação não agradava muito a Henrique, que às vezes corava de pejo e de indignação por sua irmã, mas não deixou de excitar-lhe viva curiosidade de conhecer uma escrava de tão extraordinária beleza.
No dia seguinte ao da chegada dos mancebos às oito horas da manhã, Isaura, que acabava de espanejar os móveis e arranjar o salão, achava-se sentada junto a uma janela e entretinha-se a bordar, à espera que seus senhores se levantassem para servir-lhes o café. Leôncio e Henrique não tardaram em aparecer, e parando à porta do salão puseram-se a contemplar Isaura, que sem se aperceber da presença deles continuava a bordar distraidamente.
--- Então, que te parece? – segredava Leôncio a seu cunhado. – Uma escrava desta ordem não é um tesouro
inapreciável? Quem não diria, que é uma andaluza de Cádiz, ou uma napolitana? ...
--- Não é nada disso; mas é coisa melhor, respondeu Henrique maravilhado; é uma perfeita brasileira.
--- Qual brasileira! é superior a tudo quanto há. Aqueles encantos e aquelas dezessete primaveras em uma moça livre
teriam feito virar o juízo a muita gente boa. Tua irmã pretende, com instância, que eu a liberte, alegando que essa era a vontade de minha defunta mãe; mas nem tão tolo sou eu, que me desfaça assim sem mais nem menos de uma joia tão preciosa. Se minha mãe teve o capricho de cria-la com todo o mimo e de dar-lhe uma primorosa educação, não foi decerto para abandoná-la ao mundo, não achas? ... Também meu pai parece que cedeu às instâncias do pai dela, que é um pobre galego, que por aí anda, e que pretende libertá-la; mas o velho pede por ela tão exorbitante soma, que julgo nada dever recear por esse lado. Vê lá, Henrique, se há nada que pague uma escrava assim? ...
--- É com efeito encantadora --- replicou o moço, --- se estivesse no serralho do sultão, seria sua odalisca favorita. Mas devo notar-te, Leôncio, --- continuou, cravando no cunhado um olhar cheio de maliciosa penetração, --- como teu amigo e como irmão de tua mulher, que o teres em tua sala e ao lado de minha irmã uma escrava tão linda e tão bem tratada não deixa de ser inconveniente e talvez perigoso para a tranquilidade doméstica...
--- Bravo! – atalhou Leôncio, galhofando, - para a idade que tens, já estás um moralista de polpa! ... mas não te dê isso
cuidado, meu menino; tua irmã não tem dessas veleidades, e é ela mesma quem mais gosta de que Isaura seja vista e admirada por todos. E tem razão; Isaura é como um traste de luxo, que deve estar sempre exposto no salão. Querias que eu mandasse para a cozinha os meus espelhos de Veneza? ...
1 – Leôncio, o vilão da história, sente-se atraído pela “extrema beleza” e pelas “graças incomparáveis de Isaura”. Destaque no texto trechos que revelam o caráter de Leôncio por meio de suas intensões a respeito da escravidão.
2- Isaura correspondia às “investidas” de Leôncio? Justifique sua resposta com um trecho do texto.
3- Reforçando a questão moral do caráter de Leôncio, o vilão é casado. O que motivou seu casamento? 4- O autor faz uma distinção entre amor e paixão.
5-Explique essa distinção entre amor e paixão dando exemplos.
Soluções para a tarefa
Resposta:
1- “Estava reservado à infeliz Isaura fazer vibrar profunda e violentamente naquele coração as fibras que ainda não estavam de todo estragadas pelo atrito da devassidão.”; “[...] deixando transluzir com revoltante cinismo as lascivas intenções, que abrigava no coração.”
2- Não, a partir do seguinte trecho: “Concebeu por ela o mais cego e violento amor, que de dia em dia ia crescendo na razão direta dos sérios e poderosos obstáculos que encontrava, obstáculos a que não estava afeito, e que em vão se esforçava para superar.”
3- Interesses Financeiros
4- A paixão está totalmente ligada à atração física, que, de acordo com o texto, “se ceva no gozo dos prazeres sensuais, e com eles se extingue”. Pode-se concluir que, diferente da paixão, o amor é duradouro, relacionado à alma, ao espírito, e não apenas ao seu aspecto carnal.
5- A paixão é o que você sente quando está em um relacionamento com alguém que aos seus olhos parece perfeito. O amor é o que você sente quando ainda está louco por essa pessoa mesmo depois de descobrir que ela é cheia de defeitos e, ainda assim, é perfeita para você.