O assalto
Uns desses dias fui assaltado. Foi num virar de esquina, num desses becos onde o escuro se aferrolha com chave preta. Nem decifrei o vulto: só vi, em rebrilho fugaz, a arma em sua mão. Já eu pensava fora do pensamento: eis-me! A pistola foi-me justaposta no peito, a mostrar-me que a morte é um cão que obedece antes mesmo de se lhe ter assobiado.
[...]
— Diga qualquer coisa.
— Qualquer coisa?
— Me conte quem é. Você quem é?
Medi as palavras. Quanto mais falasse e menos dissesse, melhor seria. O maltrapilho estava ali para tirar os nabos e a púcara(*). Melhor receita seria o cauteloso silêncio. Temos medo do que não entendemos. Isso todos sabemos. Mas, no caso, o meu medo era pior: eu temia por entender. O serviço do terror é esse — tornar irracional aquilo que não podemos subjugar.
— Vá falando.
— Falando?
— Sim, conte lá coisas. Depois, sou eu. A seguir é a minha vez.
[...]
Fomos andando para os arredores de uma iluminação. Foi quando me apercebi que era um velho. Um mestiço, até sem má aparência. Mas era um da quarta idade, cabelo todo branco. Não parecia um pobre. [...] Foi quando, cansado, perguntei:
— O que quer de mim?
— Eu quero conversar.
— Conversar?
— Sim, apenas isso, conversar. É que, agora, com esta minha idade, já ninguém me conversa.
Então, isso? Simplesmente, um palavreado? Sim, era só esse o móbil do crime. O homem recorria ao assalto de arma de fogo para roubar instantes, uma frestinha de atenção. Se ninguém lhe dava a cortesia de um reparo, ele obteria esse direito nem que fosse a tiro de pistola. Não podia era perder sua última humanidade — o direito de encontrar os outros, olhos em olhos, alma revelando-se em outro rosto.
E me sentei, sem hora nem gasto. Ali no beco escuro lhe contei vida, em cores e mentiras. No fim, já quase ele adormecera em minhas histórias, eu me despedi em requerimento: que, em próximo encontro, se dispensaria a pistola. De bom agrado, nos sentaríamos ambos num bom banco de jardim. Ao que o velho, pronto, ripostou:
— Não faça isso. Me deixe assaltar o senhor. Assim, me dá mais gosto.
E se converteu, assim: desde então, sou vítima de assalto, já sem sombra de medo. É assalto sem sobressalto. Me conformei, e é como quem leva a passear o cão que já faleceu. Afinal, no crime como no amor: a gente só sabe que encontra a pessoa certa depois de encontrarmos as que são certas para outros.
COUTO, Mia. In: Ficções: revista de contos. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 1999, ano II, número 3, P.10.
(*) púcara: recipiente com asas; aqui, recipiente para guardar legumes.
Assinale a alternativa correta.
A
Com a narração de um assalto, o autor pretende exemplificar a tese de que, em certos casos, os motivos justificam o crime.
B
Neste conto, o exagero e o aparente absurdo de uma situação são usados para denunciar um problema social.
C
O conto denuncia a segregação e o preconceito racial sofridos pelos negros e mestiços na África colonizada pelos europeus.
D
No final do conto, uma revelação surpreendente produz efeitos de humor, o que reduz a força da denúncia.
E
Com essa história, o autor pretende mostrar que a compreensão e o amor podem desarmar nossos inimigos.
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No conto "O assalto", temos que o narrador relata uma situação totalmente exagerada que ele passou, afim de fazer uma denúncia social, a de que mais ninguém tem dado atenção para as pessoas mais velhas (alternativa B).
Este conto tem como enredo um suposto assalto durante uma noite, em uma rua escura, onde um senhor com cabelos brancos resolve apontar uma pistola para o peito do narrador.
O mais surpreendente é que ele não desejava roubar, mas, apenas conversar.
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